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A mostrar mensagens de março, 2019

O Sol Omisso

Teria inspirado todo o ar do mundo se a ele tivesse acesso. Provavelmente o meu corpo não aguentaria a pressão, e a fragilidade, ou inexistência da minha massa muscular cederia à minha própria ambição de querer ser um melhor eu (e assim, aos olhos desatentos de todo o mundo, simplesmente e inexplicavelmente explodiria). De facto, foi esse o factor que me conduziu à situação que agora vivia, e não podendo fazer mais nada neste momento a não ser lidar com tal, saboreei o oxigénio que me circulava pelo sangue, e decidido, expirei suavemente no ritmo com que abria os olhos. FODA-SE! O mundo está de pernas para o ar! Não passaram mais de cinco segundos desde que pestanejei, e posso jurar-vos a pés juntos – haviam-me instruído que era este o costume correcto - que antes de semicerrar os olhos, o mundo estava exactamente igual a todos os outros dias e noites. Mas agora, o chão era o tecto, o tecto era o chão, e a imensa avenida que posso avistar lá fora estava no céu, enquanto que as nuv

O amor é um ciclo

Vivíamos um para o outro, parecia que tínhamos estado sempre ali. Como se não existisse um antes e não viesse um depois. Tudo começou quando éramos jovens. Talvez tenha sido precoce mas estava calor e deixámo-nos ir. O sol raiava sobre nós, foi como se evaporássemos. Flutuámos, como se voássemos a caminho do céu. À medida que a terra ficava mais longe dos nossos pés, mais próximos estávamos. Foi como se nos fundíssemos. Conhecemos outros casais, mas nenhum como nós. Volta e meia desentendiam-se, arreliavam-se e acabavam por se separar. Como se interrompessem a suspensão que só o amor provoca. Eram autênticas tempestades, que ultrapassavam o volume aceitável de um copo de água. Nós fomos aguentando, mas os casais mais maduros tinham razão. Nada dura para sempre, todos os casais discutem. Às vezes, mesmo que não queiramos ou mesmo que seja temporariamente, temos de voltar à terra. O ambiente entre nós estava cada vez mais pesado, cada vez mais cinzento. A pressão começou a aumentar,

Repetição

Lembro-me de pouca coisa Um autocarro comum Uma fila de crianças (não fosse este um programa infantil) E o meu avô, a dar-me a mão Não são muitos os sonhos que se concretizam Mas aqui estava um, à minha frente Já imaginaram um velhote no meio da criançada? Aposto que se notava, se fosse do outro lado Lembro-me de pouca coisa Um autocarro comum Uma fila de pessoas (não fosse agora hora de ponta) E o meu avô, sentado ao meu lado Não são muitos os sonhos que se concretizam Mas aqui estava um Ao meu lado. Tiago Laranjo

Há Mais Folhas Para Além do Excel

“Quando morrer... Haverá tecnologia para lá dos meus sonhos. Haverá arte e liberdade. Quando morrer, depois de morrer Por ti, o destino será subjugado à verdade. Quando morrer Lembrar-se-ão do barulho que fiz. Mas tu, que és o som da minha vida, não sei do que te recordarás. Quando eu morrer, e da minha carne nascer uma árvore num jardim qualquer, lembra-te que nessa árvore estão os pássaros, cujas plumas um dia me caíram do chapéu. Quando os fores venerar, essas esfinges ao meu orgulho, só aí, chora. Não chores por mim. Chora porque a árvore que quero ser, mas não serei, nunca te abraçará. Chora porque de tudo o que dei às letras, à música, à arte, à vida!, tudo definhou no orgulho ferido de umas plumas tesas no chão, no sepulcro de uma árvore qualquer. Quão doce seria o teatro, o nosso teatro, se o palanque fosse feito dessa árvore, e tu o percorresses com os teus pés. Quando eu morrer, não quero aquelas tangas que fazem aos art

Fontarcada

- Capitão! Os comunistas tomaram de assalto o torreão das Virtudes!  Com o embate provocado pelo sobressalto, na mesa ficou um lago de vinho e de papel amarelo de jornal, no chão um copo partido. Aquele anúncio interrompera com estrépito o seu ritual vespertino. Sentava-se sempre na mesa mais recatada da esplanada da Cantareira e pedia meio copo de tinto com gelo e uma garrafa pequena de gasosa. Depois abria sobre a mesa as asas de papel do Comércio de um qualquer dia sorteado de cento e cinquenta e um anos de arquivo do periódico. Divertia-se naquela tarde com as notícias, carcomidas pelo bicho, do dia 29 de Agosto de 1870, enquanto rosava os lábios com o suave xarope do refresco e se reconfortava com a platitude da baía à sua frente. Essa preciosa paz foi rasgada por um bote que acelerava vindo da outra banda, e que entrara no ancoradouro com o presságio de um desastre.  - Que mais sabes, Mestre Jonas?  - É tudo. Mal vi a bandeira negra hasteada na capela de Santa Catari