As Crónicas de um Leproso

Fernando Albino Mosca Caída nasceu num McDonald’s do Porto de uma forma dolorosa e, no entanto, extremamente engraçada. A mãe, que era uma coleccionadora abusiva de brinquedos de Happy Meal, estava a discutir com uma criança porque a tinha visto com um brinquedo que ainda não possuía. A malvada criança, farta da adulta resmungona, empurrou-a com força e a grande barriga, quando colidiu com o chão, acabou por causar o nascimento do pequeno Fernando mais cedo do que o esperado. Por sua vez, o seu pai era um famoso vendedor de cachorros em Matosinhos e tinha muito sucesso. Apesar de os seus pais não serem muito dotados (ou seja: eram muito burros), Fernando teve sempre grande potencial para aprender, e o seu gosto e talento por ler e escrever não se demoraram a notar. Esse seu talento nunca foi valorizado pelo seu pai, que nunca se surpreendeu pelos seus dotes. Pode-se dizer que não continha uma costela criativa, aliás, uma salsicha criativa. Continuando: “O investimento está na comida, as pessoas não se vão alimentar com papel!” era uma das frases favoritas do pai quando o tema vinha à conversa.

Fernando estava determinado a provar ao pai, um dia, que conseguiria ter sucesso. Estudou, formou-se, mas tem tido problemas em encontrar uma editora que goste do livro, e como não podia depender do dinheiro do pai, não tinha outra solução a não ser continuar a tentar.

Um dia, houve um livro que começou a ser bombardeado às massas pela televisão, pela rádio, enfim, era falado em todo lado. Ninguém sabia bem quem, onde, como e porquê, mas chegou facilmente a ser bestseller e era impossível encontrar alguém que não conhecia a obra. Um autêntico mistério digno de Sherlock Holmes. Muitas das críticas eram bastante vagas e a única coisa que se sabia de fora é que era uma “adaptação asquerosa de um outro livro mas misturado com a nossa realidade, a realidade do século X e portais”, algo que foi dito pelo próprio autor.

Fernando, que não ficou indiferente à situação, foi à livraria mais próxima da sua habitação para dar uma olhadela. Não resistiu e quis encontrar a razão do sucesso desse colega de profissão. Assim que pegou numa cópia do livro começou a ler a contracapa:

As Crónicas de um Leproso

Junte-se à fascinante história de Xavier Cabral, o indivíduo que experimentou entrar na máquina de lavar roupa da casa da vizinha que, por sua vez, o mandou para um mundo… exactamente igual ao nosso, mas com a exceção de que ele passou a ser um leproso. Um conto memoravelmente nojento que não vai querer perder!

Agora, Xavier vai ter de ultrapassar vários obstáculos, como por exemplo: o tempo de espera nas urgências, o uso de tesouras para canhotos, a jovem que está tão apaixonada que ignora a falta de saúde de Xavier até ser tarde de mais, chegando a beijá-lo e ficar também com a doença (ups, spoiler alert) e a sua recente ambulofobia.

Mas para conseguir vencer, o nosso Xavier não está sozinho! Tem o ratinho Cornélio e o seu amigo fadista Diogo António (metade do livro são as canções dele, só para avisar) como seus acompanhantes!

Será que o nosso doente aventureiro vai conseguir voltar ao mundo real? Que mais vai ele descobrir? Será que isto tudo é só para lhe dar uma lição de moral toda cliché? Será que essa lição era sequer para ele? Podia ser para a vizinha, sei lá… Mas que ser, com capacidades de transformar um ordinário electrodoméstico num portal para outro mundo, seria de tal forma mesquinho ao ponto de criar tamanho castigo? Que mal tem a vizinha? É por não reciclar e não se preocupar com o ambiente? Como é que isto tudo caberá numa contracapa? Isso agora é problema da editora.

Quando Fernando acabou de ler a contracapa do livro, suspirou. Ficou a olhar especado para o objecto de leitura da livraria, melancolicamente, durante 10 longos minutos. Lentamente colocou o livro na prateleira e saiu. Foi neste momento que perdeu toda a sua motivação para ser escritor, para dar a conhecer o seu talento ao mundo, para ter um pretexto de se atirar àquela moça que trabalha na biblioteca - mas mais importante que tudo, para que o seu pai tivesse orgulho em si. Mas isso tinha acabado! Para quê esforçar-se se lixos como aquele aparecem nas livrarias, enquanto que o seu manuscrito era rejeitado inúmeras vezes por várias editoras? E aquele lixo estava a ser vendido a 39,99 eurinhos!

Fernando decidiu então que iria parar com isto e, assim, também ganhar a vida com algo que exigisse o mínimo de esforço e talento possível.

Esta decisão ocorreu há 15 anos.

Agora Fernando, um homem de 45, é o típico cantor pimba que faz sempre playback e que aparece em programas da manhã. Deixou de se importar com os livros, e a única escrita a que se dedica é a recriação melódica de frases ditas em novelas. Estava endividado porque pagava para aparecer nos programas, mas não era infeliz. Era só mais ou menos, apenas quando não lhe ocorria pensar muito na sua existência. Para isso contribuía o trabalho, que o distraía dessas divagações filosóficas. Como é o caso da elaboração do próximo single a juntar-se ao seu vasto reportório, e cujo título será Retira a lepra do meu coração.

E assim estava Fernando, o ex-escritor criativo.

Este texto é de origem totalmente fictícia. Portanto, se estava à espera de ler algum documento factual, teve bastante azar. Até podemos dizer que tudo isto é duplamente fictício. Se alguma coisa o tiver ofendido, sugiro-lhe que pense em gatinhos fofinhos. A mim ajuda-me sempre.

Miguel Azevedo

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