Hoje, não te levantes

Das janelas – altas, quadradas e em sequência na parede à minha frente – só se vêem telhados e um pouco do céu azul, sem nuvens, só azul claro, clarinho. 

A secretária, onde repousa o computador e portanto a folha digital onde escrevo, é uma espécie de ilha perdida, no meio de outras ilhas, que conserva, sabe-se lá há quantos anos, comunicados de imprensa, impressos de estudos publicados em revistas científicas, inúmeros livros nacionais e estrangeiros e uma planta, de espécie não identificada, que se ergue para cima e para os lados com as suas folhas tão verdes que, não existindo assim luz suficiente, muito menos natural, se estranha a vivacidade. 

O espaço é grande, o barulho pouco, e o som das teclas reconforta-me num dia que já devia ter chegado ao fim, mas que continua dolorosamente vivo, à espera da ansiada morte, do risco de mais um número no calendário, só para aqui voltar outra vez amanhã. 

Não foi um mau dia, registe-se. Foi, até, um dia entusiasmante, entre histórias de ferrugem e colheitas de trigo afectadas por doenças fúngicas. Mas, acabadas as histórias, ficam os livros abertos com as letras já velhas a espreitar e, claro, um leitor curioso com os próximos capítulos, mas que precisa de ir fazer a digestão das palavras. 

Chega-se tarde a casa, aquece-se lasanha no microondas e, depois de se queimar a língua e deixar-se manchas de tomate nos sítios mais inesperados, como prova do crime, já não se tem forças para lavar o prato. Deixa-se a louça a repousar num lado qualquer e, com sorte, voltará a estar imaculada, lá para a próxima semana. 

Quando descem, por fim, as pálpebras, começam os aviões a zumbir, as pessoas do andar de cima a arrastar cadeiras, ou a pular, sabe-se lá se gostam de fazer exercício nocturno, e o frigorífico parece uma debulhadora. Os pensamentos enegrecem. O que fazer para acabar com o barulho? No dia seguinte, escreve-se sobre cadáveres. Nem de propósito.

Raquel Dias da Silva

Comentários

Enviar um comentário