Modernidade mais tardia que a minha virgindade

Que é? Não é vergonha nenhuma. É o que nunca ninguém disse, literalmente. Ninguém diz essa merda. Se não fosse realmente uma vergonha fazer-se-ia precisamente o oposto, e andaria toda a gente por aí a gabar-se da durabilidade da virgindade como se fosse alguma espécie de troféu, semelhante ao comprimento do pénis. 20 anos-luz em ambos, baby.

É isto que fazemos. Agora e sempre, gabamo-nos das coisas. Simplesmente agora arranjámos novas plataformas para esse velho vício. E se não temos coisas grandes de que nos gabar, falamos sobre o tamanho das mãos num debate para dar certezas a toda a gente, ou então compramos coisas ainda maiores. No meu caso, isso é discutível, já que não tenho mesmo algo maior que comprar, e se tivesse nem o poderia fazer, uma vez que nunca encontrei a Galáxia Andrómeda disponível para comprar na Remax ou no OLX. Seria realmente a única coisa.

Quando nos queremos gabar das posses, o usual a comprar é um smartphone com um ecrã cada vez maior, com o intuito de ver a nossa estupidez refletida num vidro de cada vez mais gigantescas proporções. Porque é que acham que o vidro se chama Gorilla Glass senão pelo que reflete quando olhamos para ele? Agora que penso nisso, não devia ter adquirido um modelo com um visor tão reflexivo. Sempre que olho para o meu telemóvel e ele tem o ecrã desligado parece que fui eu quem se misturou com os gorilas. Por outro lado, com tanto smartphone por aí a utilizar esse vidro, estarão realmente os Gorilas da Montanha em extinção? Levantem os olhos do telemóvel, olhem ao vosso redor, e descobrirão a resposta.

Gostamos também de comprar um carro desportivo cada vez mais rápido, com o intuito de chegar cada vez mais depressa a lugares onde ninguém quer saber de nós. Compramos também um dildo cada vez maior para diversas utilidades. Não preciso realmente de elaborar sobre essas, e, mesmo que quisesse, mensagem privada por favor.

(Falei destes exemplos por experiência própria. Isto é, nos primeiros dois casos, claro. Nem sei porque referi o terceiro.)

Depois da compra vamos para o Facebook e gabamo-nos do smartphone novo, do carro desportivo ou do dildo. Já no Instagram o ato de gabar nem sequer é requerido. Basta colocar a foto, porque o próprio ato de gabar é inerente à plataforma. Fazemos destas coisas a toda a hora, e masturbamo-nos pelos likes e … Espera lá, vocês não? Sou só eu?

Sentimo-nos perdidos sem os likes porque vivemos para eles. Eu sinto-me aborrecido sem eles, simplesmente, porque depois tenho a trabalheira de ir ao PornHub. Ugh, modo incógnito e merdas  dessas outra vez. Os likes tornaram-se as nossas verdadeiras últimas palavras, a solução-chave, o fator diferenciador entre relevância e irrelevância, entre a memória e o esquecimento de uma população com um attention span de cinco segundos. Sem likes eu sou um irrelevante, se bem que isso não é grande problema, pois eu já era irrelevante como a merda antes de surgirem likes. Eu lá me lembro se existia nessa altura, mas a situação só parece ter piorado desde então. Sou irrelevante porque me medem através de um número que não consigo acompanhar. Já não chegava o comprimento do pénis? Já atravessava dificuldades com esse. Logísticas, principalmente. Procurar pela régua e toda uma série de instrumentos matemáticos adequados era um pesadelo. E os meus colegas do secundário ainda falavam de dimensões mais astronómicas que as minhas. Vá-se lá saber…

Portanto, números. Sempre me disseram que a Matemática me iria acompanhar pela vida. Eu dizia: “Vai-te foder se isso chega a acontecer. Não tens vergonha na cara, a desejar assim mal às pessoas?”. E, bem, onde estás tu agora, Matemática? Espalhei pétalas de flores, acendi uma vela aromatizada a maçã e canela, e até limpei o quarto em antecipação da tua tão aguardada chegada. 

Estou a gozar, claro. Sacudi tudo para debaixo do tapete, Matemática, tal como fiz com as tuas notas no 8.º ano. Sim, as tuas notas, e não minhas, sua puta. Não foi algo bonito de se ver ou fazer, mas tinha de ser feito. O mesmo poderia ser dito sobre a Matemática, curiosamente. A questão no 8.º ano é que a PlayStation estava em jogo, e eu escolhi o que seria realmente importante para mim. A PlayStation deu-me boas memórias, tu deste-me dores de cabeça e uma fractura no cúbico. Atualmente não me serves de nada. As minhas armas são as letras. Quando preciso de números invento. Portanto, acho que fiz uma escolha acertada, provavelmente pela última vez na minha vida.

Na faculdade onde estudo Ciências da Comunicação ouve-se falar de números de vez em quando. Da tua nota de merda à maior parte das cadeiras, certamente, mas também de outros números. Agora provavelmente pensam: “Oh, não, lá vai ele fazer mais um trocadilho sobre o comprimento do pénis! Salve-se quem puder!”. Salve-se de quê, do meu pénis? Não, na minha faculdade falamos de outras coisas, de outros números. Por exemplo, como obter mais engagement nesta publicação? A sério, como? Estou aqui a escrever isto na puta de um caderno, não faço ideia. E em que caralho está o botão do like? As redes sociais e os likes, que são tão importantes, e eu aqui todo old school a escrever num caderno, a não perceber nada dessa merda. 

Já nem há só likes. Já nem esses são suficientes para as outras pessoas ficarem a saber o que achámos do seu smartphone, carro desportivo ou dildo para, pronto, já perceberam essa. Agora há também “Adoro”, “Riso”, “Surpresa”, “Tristeza”. “Merda”, esqueci-me de um. “Ira”, que estúpido que sou! São estas as Reações. É verdade que, quando o Facebook as anunciou, fui apanhado um bocado de “Surpresa”. Não estava mesmo à espera. Nem eu nem outros. Ironicamente, a internet reagiu. Houve uns que “Adoro” esta merda, outros que “Ira” para esta porra, e outros que sentiram “Tristeza” pela humanidade. Lol, ou melhor, “Riso”! Bem que andávamos a precisar destas Reações, não acham? Já me sentia um pouco inerte, para dizer a verdade. Precisava de me espreguiçar, de esticar os braços de tanto fazer scroll, e ver as minhas complexas emoções enquanto ser humano canalizadas e afuniladas numas 5 ou 6 opções. Simples, não é?

Vá, agora vocês. Um “Riso” final. Vá lá, nem que seja por pena. Sei que o andaram a guardar desde o início do texto. Sei também que ao longo do mesmo fui só mais um “comediante” que vem para aqui falar de tecnologia e redes sociais, como se disso já não houvesse suficientes. Ser comediante nos dias de hoje é quase sinónimo de implicar com tudo o que seja “novas tecnologias”, se é que elas existem. Eu vejo à minha frente ainda um longo percurso para ter esse estatuto.

Obrigado.

Samuel Soares

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