O regresso dos deploráveis

Num misto de repulsa e curiosidade mórbida, assisti à cobertura mediática das manifestações fascistas que tiveram lugar no ano passado em Charlottesville, no estado norte-americano de Virginia. Não demorei muito a perceber que os factos ocorridos eram enquadrados pela esmagadora maioria dos repórteres (e também, naturalmente, pelos comentadores das redes sociais) segundo essa lógica que costuma “resolver” o problema da extrema-direita — a lógica do estranhamento. Isto é, dei-me conta de que os artigos de imprensa e alguma da indignação facebookiana construíam uma imagem quase exótica daquela gente branca, medíocre e zangada. Como se estivéssemos perante um grupo de extraterrestres que periodicamente se lembra de vir aterrar no nosso planeta para causar estragos. Como se, em última instância, todos eles não fossem outra coisa senão o próprio Mal personificado, algo tão radicalmente abjeto e contrário aos nossos valores que não merece sequer uma palavra para além do espanto, do insulto e do estranhamento. 

Não é difícil compreender em que medida o jornalismo, enformado pela ideologia (neo)liberal, contribui ativamente para a manutenção deste espanto e silêncio em torno da extrema-direita. Ao acomodar-se nas suas funções de observação e registo “imparcial”, a escrita jornalística apresenta os factos como se estes se tratassem de explosões de tempo presente. Os media, ao converterem unidades de realidade em unidades de informação, tendem a privilegiar a produção de notícias planas e pontuais, onde o acontecimento surge isolado, explosivo, e, portanto, desligado de quaisquer hipóteses explicativas que ultrapassem as fronteiras temáticas e temporais do atual (no caso de Charlottesville, a revolta daquela gente parece esgotar-se na oposição à remoção da estátua de Robert E. Lee — é essa a razão suficiente do acontecimento, dizem-nos os jornalistas). Em tais condições, um facto de interesse público, ou melhor, de preocupação pública — um protesto da extrema-direita — , é materializado, nas notícias e nos espaços de comentário, sem genealogia (por vezes até mesmo “sem precedentes”) e, aparentemente, sem juízos de valor, sem “ponto de vista”. 

Pura aparência, é claro. Há, como não podia deixar de ser, um ponto de vista privilegiado para pensar hoje o fascismo. Trata-se de uma perspetiva falsamente “centrista”, que reduz o gesto fascista à violência pré-política a ele associada (em termos práticos, faz dele uma caricatura: skinheads, incultos, monstros, deploráveis, etc.), mas, quase paradoxalmente, tolera esse discurso como sendo um “mal necessário” da vida em democracia. Não por mera coincidência, este é o mesmo ponto de vista que a todo o momento fabrica e naturaliza as suas pérolas de sabedoria acerca do espectro político (“os extremos [esquerda e direita] tocam-se”, “no meio é que está a virtude”, ou, melhor ainda, “o ideal é ser-se de esquerda em matérias sociais e de direita em matérias económicas”…). É uma perversa forma de senso comum que atravessa todas as instituições do poder que, na América e na Europa, procuram vencer a extrema-direita pelo desprezo, deixando por responder algumas exigências universais (e por isso mesmo) legítimas também presentes neste género de movimentos.

Reuters | Joshua Roberts

E que exigências legítimas são essas? Não serão certamente as do discurso do ódio, as reivindicações xenófobas, misóginas e homofóbicas, que funcionam como primeiras palavras “mágicas” de agregação de multidões. Muito pelo contrário, as exigências legítimas da extrema-direita são precisamente aquelas que se não podem falar pela fala fascista, visto que, como é bem sabido, esta obriga a direção da vontade revolucionária contra um Outro particular, determinado como antagónico ao Eu-fascista pela sua etnia, sexo, nacionalidade ou contexto cultural. Legítimas, portanto, são as exigências que habitam a região do não-dito na ideologia fascista e que, por consequência, não são dela exclusivas — é o sentimento de insatisfação daqueles que viram as suas vidas viradas do avesso pelas recentes metamorfoses e metástases do sistema económico. É a revolta dos indivíduos que ficaram do lado de fora da redoma da globalização, para nos apropriarmos da metáfora de Sloterdijk — falamos dos desempregados, dos desamparados, dos deserdados.

Se nos detivermos neste suposto propósito do fascismo, o de dar voz aos que não têm lugar na ordem capitalista das coisas, talvez consigamos compreender os sucessivos “regressos” dos “deploráveis”, que, ao que tudo indica, deverão tornar-se cada vez mais frequentes. Mas antes disso, impõem-se alguns esclarecimentos. Começando pelo mais óbvio, há que dizer que a fala fascista tem pouco de “voz” e muito de “grunhido” — por não permitir a pura expressão da vontade essencial que a motiva, por se deixar parasitar por questões alheias e oportunistas (raça, sexo, nacionalidade). Ainda assim, o fascismo consegue, com alguma eficácia, sinalizar um mal-estar, anunciar o descontentamento que depois não é capaz de articular justamente. E é aqui que nos deparamos com um grande problema: é que esta sede de mudança, esta vontade revolucionária, não sendo própria do fascismo (que apenas a instrumentaliza e perverte), raras vezes encontra outra máscara ideológica, outro veículo, outro meio de acesso ao coração da vida pública.

Mas por que razão se costuma manter a violência da revolução nas periferias da pólis contemporânea? Tal sucede porque vivemos na era da pós-política, responderão alguns pensadores de esquerda como Rancière e Žižek. Este último chega mesmo a fornecer-nos uma definição devastadora, mas pertinente, da pós-política: ela é uma espécie de “centrismo radical” que se ocupa da resolução das pequenas crises, dos conflitos particulares que dizem respeito a cada “sub-grupo” social imerso na sua particularidade (os banqueiros, os praticantes de uma dada religião, os grupos étnicos, os homossexuais, os patrões…). Ora, sem negar por completo os sinais de progresso evidenciados por esta espécie de discriminação positiva (no que às minorias diz respeito), Žižek deixa bem claro que a atual pós-política tem na sua génese uma espécie de recalcamento da política propriamente dita. Isto porque, assim o escreve o filósofo esloveno em Elogio da Intolerância, “o próprio do ato político (…) não é simplesmente funcionar bem no interior da trama das relações existentes, mas modificar a própria trama que determina a maneira como as coisas funcionam” (2006, p. 42).

A pós-política, constituindo-se como a arte do possível, assegura-se de que cada um tem condições para permanecer no lugar que lhe foi justa ou injustamente atribuído. Não se reformula a ordem existente, fazem-se apenas micro-ajustes que silenciem as possíveis queixas que vão surgindo a respeito das relações institucionalizadas. Todavia, a política autêntica, diz-nos Žižek, é exatamente o oposto: é a arte do impossível. Ela não pergunta “mantendo-se as coisas como estão, o que nos é possível fazer?”, mas sim, “o que não pode ainda ser feito?”, “o que nos obrigaria a repensar totalmente o próprio sistema?”.

É preciso regressar agora ao problema do fascismo. Não é o sonho da extrema-direita (que, previsivelmente, fica sempre por concretizar) uma comprometida reformulação do sistema? Não descobrimos aí uma vontade que é, apesar de tudo, política? Nesse desejo de exprimir o inexprimível, que no caso fascista se traduz na nostalgia de um passado impossível (“Fazer a América grande de novo”, por exemplo), não encontramos parte do que hoje ainda resta da verdadeira política? Não se apresentou Donald Trump como um candidato que vinha de “fora do sistema” e que, por isso, teria de fazer política (produzir novas relações), obrigando a uma rutura com a pós-política de Washington (que até aí se ocupava somente da gestão das relações existentes)?

Há, é certo, exemplos bem mais felizes da política “autêntica”, tanto à esquerda como à direita, mas raramente estes florescem no interior dos grandes partidos, e, por conseguinte, falta-lhes a regularidade e o poder de mobilização dos movimentos de extrema-direita. Enquanto a maquinaria elitista e densamente burocrática dos partidos políticos os impedir de apelar à paixão política universal, estamos irremediavelmente entregues aos bichos — às piores formas de nacionalismo e autoritarismo imagináveis. E enquanto formos incapazes de objetivar o sistema e repensá-lo (para Žižek, tal operação passaria primeiro por uma repolitização da esfera do económico), não estaremos aptos para combater os monstros que este produz, residual e sistematicamente.

Terminado o comentário, faço a ressalva: compreender as motivações da extrema-direita não serve, de modo algum, para a desculpabilizar, muito menos para autorizar quer o seu discurso quer a sua praxis (que demasiadas vezes ganham contornos criminosos). Compreender é antes um primeiro e indispensável passo para reconquistar o espaço político que lhe foi cedido.

Diogo Ferreira

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