Não mata mas pica

Já todos aqui levámos uma. Eu já, tu também, os teus vizinhos e primos não ficam de fora e até a dona Irene do 2.º já levou, pelo menos uma vez na vida.
 Não estou a falar de vacinas.

Coima. 

Até é uma palavra difícil de pronunciar. E mais difícil ainda de engolir. Mas tenho uma teoria: sâo elas o ritual de passagem para a idade adulta. 

Se ainda não deixaste a tua inocência por aí em alguma estação de metro, comboio, num estacionamento mal feito ou mal pago ou numa rotunda à noite onde o balão marca mais de 0,5, então este texto não é para ti, seu assíduo leitor da Bravo e colecionador de posters dos D’ZRT. Ainda não passaste pela experiência de ser esvaziado da tua essência de teenager enquanto te aparecem magicamente duas rugas de expressão, uma senha das finanças e uma declaração do IRS nas mãos. 

(E olhem, isto não é um texto sobre uma multa) 

Uma mulher vai criando uma imagem agradável de si própria - sente-se respeitável, uma lady na mesa, ocasionalmente charmosa, atrevo-me. Desce as escadas para o metro com ar confiante, enquanto nos ouvidos os fones cantam o All By Myself Respect da Aretha Franklin e debaixo do braço vai o frango assado e o gelado já a derreter saco de legumes para fazer a sopa… Nada a derruba! Mulher emancipada e independente! (Só perde a compostura quando o metro pára lá ao fundo e tem de dar aquela corridinha descoordenada enquanto tenta agarrar tudo o que tem nas mãos e não tropeçar no fio dos fones, que entretanto caíram com as pressas, nem pisar ou ultrapassar a linha amarela existente junto ao porto do cais). 

As Olaias têm a estação de Metro mais bonita da península ibérica, dizem. Vale o título, é um espaço bem decorado, amplo e com umas pinturas modernaças. Mereceu até uma fotografia assim que lá cheguei (mugshot antecipado?) comemorando a minha primeira visita àquele local (e última). Subi as escadas rolantes a contemplar as paredes, com relevos de mãos de vários tamanhos diferentes... bonito, inspirador... nada me preparava para a apoplexia dos momentos seguintes. 

[Há profissões muito ostracizadas neste mundo. Nem que me pagassem bem eu ia para dentista ou fiscal da EMEL, esses protagonistas das histórias de terror contemporâneas. Nunca temi tanto o lobo mau nem o Capitão Gancho quando era criança quanto hoje repudio essa raça que são os picas. São tão marginalizados que nem sei o nome correto deles. Carrascos!, lembrei-me agora. 
Imagino as realizações profissionais de um pica. O olhar sádico com que se mira ao espelho e pensa “Eh ganda matulão! Hoje já lixaste mais uns quantos”. E o seu círculo de amigos? Composto por pessoas que param do lado esquerdo das escadas rolantes, clientes que pedem fatura com contribuinte e depois não o sabem de cor e vasculham na mala à procura do cartão - e a fila à espera dos meninos -, gente que pensa que é DJ e dá música a todos na rua. Que serão agradável se passaria com esta grupeta.]

(Imaginavam a transição para a idade adulta com champanhe e strippers? A minha meteu lágrimas e 6 picas. Mas no fundo isto não se resume só a uma multa, atenção) 

Então lá estavam, nesse dia fatídico, 6 espécimes dessa raça, posicionados quais cães de caça antes das cancelas que nos prendiam no submundo. Quando o mais careca me pediu o passe, foi com plena confiança na minha impunidade que lho entreguei em mão, sorrindo cheia de mim, como quando entrei pela primeira vez numa sex shop com 16 anos. O pior foi que me mandaram embora da loja, porque era para maiores de 18. Mas isso ainda eu não sabia – tal como não sabia que a máquina iria detetar que, por algum mal-entendido consequente da minha pressa (ou de ir a olhar para tudo distraída, a imaginar-me num videoclip) não passara corretamente o cartão. You had one job

E a máquina, tal como o careca, não tinha coração e não me perdoou. 

“São 141, 25”. (Imaginemos 140 euros. Sete notas de vinte, 14 notas de 10, 28 notas de cinco. Mais uns trocos que bem poupados ainda dão para 3 cafés de qualidade - inferior. O que eu não faria se os tivesse! Uma pista: nada de muito extravagante. Talvez fosse ao cinema sem ser à terça feira, talvez os guardasse apenas e começasse um mealheiro - é que isto de estagiar é giro e dinâmico mas eu não me alimento de experiência, não visto iniciativa, não atesto o depósito do carro com know-how e não pago a água e a luz com currículo). 

(Nem pensem que isto é um texto sobre uma multa) 

Uma pessoa perde ali todo o orgulho. Eu, que nem choro com facilidade (quem o faz é o meu alter ego com tpm, é um mariquinhas), caí ali no chão, aos pés do careca, como que implorando para ele não ir para o Ultramar. Os outros cinco devem ter esperado um golpe baixo e logo vieram rodear o compincha, oferecendo auxílio. Mas nem pensei eu em atacá-lo! Só estava ocupada a deitar fora a minha honra convertida em lágrimas, a gritar que sou pobre, que tenho saudades da minha mãe e do meu pai, que a minha ex vizinha do rés-do-chão fazia pão com torresmos e oferecia ao prédio inteiro, que o meu gato Tobias se evadiu de casa há 7 anos sem nunca voltar, que o meu Tamagotchi morreu subnutrido e que tenho 3 euros na conta. 

(Isto não é sobre… ah, vocês sabem) 

No final de contas, lá tive de me levantar. Saí dali com um ego destruído, os olhos inchados, a respiração ainda aos soluços e um bilhete com o veredito na mão. Quem me visse ia pensar que tinha recebido uma carta de final de relacionamento. Mas não. O que tinha chegado ao fim era a minha doce e ingénua mocidade. Nem uma despedida de adolescente, nem umas palavras finais. Só “Tem 10 dias úteis para pagar isto ou agrava”. 

Incrível como quando algum azar nos acontece temos sempre mil opiniões de outrem prestes a serem disparadas na nossa direção. (Tenho pena que os nossos ouvidos sejam de entrada livre, que não sejam precisas chaves. Adorava poder usá-los fechados ao público. Detesto a sua disponibilidade própria). É que, depois de ter o azar da semana (neste caso do mês ou do ano até, porque não tive doenças graves nem entrei ainda em bancarrota), ainda tive de ouvir todas as hipotéticas reações daqueles que me rodeiam. Ai eu se fosse a ti não pagava, ai tu é que foste burra, ai isso comigo é que era bom! É que uma pessoa tem de desembolsar o ordenado que não ganha e ainda tem de ouvir que é choninhas.

(Será que acabei de escrever um texto sobre uma multa? Desculpem, agora já está fora de controlo)

Conclusão há (e demorou mais a redigir do que o resto do texto), moral é que nem por isso. Paguei a Coima. Por obra do Destino, que se armou em querido (sorry, it's too late to apologize) encontrei uma nota de 10 perdida no multibanco quando fui levantar os malditos 140 euros (sádicos, obrigam a pagar em verdinho vivinho). Uma esmola do Universo por passar neste ritual de transformação. “Boa, és uma mulher, agora vai lá pagar o que deves e toca a trabalhar que este país não é para novos”.

Sónia Costa

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