O Peixinho Dourado de Deus

Um dia, aliás, no dia, Deus criou o céu, a terra e todas as coisas que nela habitam. Ao Homem, que havia criado à sua imagem e que por isso gozava de um favoritismo que os outros invejavam, deu o livre arbítrio para que este pudesse gerir o seu Fado como bem entendesse. Era Sua intenção que com esta faculdade pudesse Ele não se preocupar mais com o destino da Terra, e assim desfrutar de umas eternas férias. Assim o fez, e no segundo seguinte a pegar nas suas malas em direcção a um interrail pelo Espaço, o Homem já lhe estava a encher o voice mail de pedidos e preces.

Por infortúnio, e uns copos a mais bebidos na estância balnear de Alpha 7, o Criador embateu num buraco negro, e vendo o tempo e o espaço dobrarem-se perante Ele, foi teletransportado para as imediações do Sistema Solar. No inesperado houve sorte, e aproveitando o facto de estar tão perto de casa, Deus decidiu lá fazer uma rápida paragem, para se limpar das poeiras cósmicas com um belo duche quente, e tomar um Guronsan que lhe permitisse regressar à estrada sideral sem a valente dor de cabeça que O atormentava. Aquando a abertura da porta do Seu loft, é confrontado com uma terrível fumaça que emanava do atendedor de chamadas – a sua infinita película havia queimado -, e a Sua chegada precaveu um incêndio de maiores dimensões.

Rapidamente, precipitou-se em abrir uma das janelas para que o fumo pudesse escoar, e ainda sem reflectir, dirigiu-se para o chuveiro onde purificou o Seu corpo daquela colheita de 73 que lhe haviam decantado na noite anterior. Regressado, e já mais lúcido, decidiu debruçar-se sobre a janela e dar uma vista de olhos à Sua criação. Nesse momento vieram-lhe as palavras de Oceano e Tétis, que no último barbecue que deram, o haviam incentivado a adquirir um aquário com um peixinho dourado em vez de criar um planeta.

Lá em baixo, na Terra, os homens haviam evoluído e estavam mais inteligentes e desenvolvidos do que Ele tinha ambicionado – isso deixara-O orgulhoso. Mas haviam-se afastado entre si, e agora dividiam-se em grau de inteligência, classe, beleza, cor e mais uma panóplia de possibilidades infinitas que Deus nunca previra. Essa divisão levou a ódios, confrontos e a uma contínua destruição daquela maravilhosa terceira rocha a contar do Sol que havia construído. A tristeza tomara conta de si, mas o livre arbítrio que lhes oferecera retirava-Lhe a responsabilidade de sentir peso na consciência pelo sucedido.

Enquanto reflectia no que poderia ter acontecido, é distraído pelo estridente barulho que vinha de uma das milhentas praças que o Homem havia edificado. Aí, um grupo – a sensação de mais um causou-Lhe náuseas – gritava por uma Sociedade igualitária, onde todos tinham os mesmos direitos. Assim, e como que arrebatado por um relâmpago, Deus tem uma ideia genial: já era tarde demais para reverter o caminho que o Homem escolhera percorrer, e seria demasiado cruel o extermínio em prol de um novo começo. Decide então descer à Terra e propõe criar centenas idênticas a esta, sendo cada uma delas hospedagem para um determinado tipo de pessoa. Desta forma, nunca a diferença seria causa de incómodo, exclusão ou confronto. porque em cada planeta, todos seriam idênticos e pensariam de forma igual. A população rejubilou em euforia e louvor, e Ele assim o fez. De seguida tomou a sua pastilha e seguiu viagem, deixando uma vez mais o Homem à mercê de si próprio.

Como ditam as regras da mera lógica, cada mundo recebeu o seu oposto, e portanto se num reinava a força, num outro era a fraqueza que ditava a lei. No primeiro, os seus habitantes nada demoraram a rebentarem com ele, fruto de batalhas pelo poder. Já os segundos ficaram a derivar no tempo até deixarem-se subjugar pelas outras espécies com quem partilharam a Terra. Noutro paralelo, foram os egoístas que herdaram o planeta. Nele, fruto do tudo querer, em alguns anos nada mais havia para explorar nos solos e nos mares, enquanto que na esfera ao lado, onde os generosos moravam, atingia-se rapidamente a penúria por tudo oferecerem, sem qualquer noção de autossuficiência e contenção. Já no mundo dos homossexuais, estes viam-se obrigados a envolver-se com o sexo oposto para assegurar a continuidade da população, para mais tarde chorarem a partida dos seus filhos, que compravam um bilhete apenas de ida para o planeta ao lado onde habitavam os heterossexuais. Este por sua vez não conseguia acompanhar o expoente crescimento de quem nele residia, e um dia, cansado, simplesmente deixou de girar.

Num outro Espaço, a quem Deus havia dado uma Terra aos anarquistas, sem ordem social nem moral as pessoas regrediram milhões de anos, e agora já nem se lembravam de conceitos como o de Humanidade, ou do dia em que pediram ao Senhor por um mundozinho só para eles. Já os estadistas, obcecados pela ordem e perfeição, tanto legislaram que eventualmente o acto de viver tornou-se um crime punível com morte. No pequeno paraíso destinado aos conformados, morria-se pela inércia da certeza que tudo lhes seria oferecido, enquanto que do outro lado da estrada cósmica, os sonhadores , ao acharem que havia um planeta melhor do que lhes havia sido dado, condenavam-se a uma morte no vazio do Espaço, quando saltavam Terra fora.

Por eles muitas preces foram rezadas no mundo dos religiosos, onde já se havia esgotado qualquer tipo de prazer e felicidade. Paredes meias, a missa era outra, e os libertinos estragavam a Humanidade do Ser ao elevarem o Homem para além do humanamente suportável. Já o cantinho destinado aos reacionários assistia a revoluções contra o quão diferente este novo planeta era, enquanto que os revolucionários, no seu outro canto, lamentavam com saudosismo aos seus filhos que os tempos de outrora é que eram.

Por todas as infinitas incubadoras que Deus havia criado, o Homem havia-se aniquilado ou reduzido ao papel de animal que originalmente tinha ocupado. A tudo isto, lá de cima da Lua, assistiam os refugiados do entusiasmo do Pai do Céu. Viveram as suas vidas na Terra primitiva sem incomodar ninguém, não viam diferença e nem lhes passava pela cabeça usá-la como galhardete. Cansados do que a Sociedade se tornara, e como ela mal os amava, compraram um foguetão e rumaram ao satélite natural meses antes de Deus descer à Terra. Assim, esquecidos e desenquadrados do resto de todos os outros, viveram até ao fim dos tempos em plena normatividade.

João Rocha

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