Reflexões sobre naturezas-mortas a partir de impressões de movimento



A PLACE IN THE SUN (1951). Cansado e imerso em tormentas infindas, ele pousa a cabeça no regaço da sua quimera, que o olha ternamente. A pietà antecipada, porque ela ainda não percebeu que a perdição lhe está próxima. Mas os seus olhos são claros e trágicos, e quando ele os lança no rosto dela, cheios de esperança, a mágoa ressoa fulminante no peito e encaminha-o, por fim, para o abismo. O seu destino, a sua consciência, numa palavra, a sua salvação, decide-se ali. O desastre físico será o resultado mecânico, inevitável, de uma engrenagem posta em acção por aquele duplo olhar: a ousadia de uma esperança impossível mas que o encandeia no seu fulgor; o apelo de piedade a um amor mais alto, ideal e puro, que o traiu.


A PLACE IN THE SUN (1951). Poor Alice. Não é fácil a vida de uma rapariga que cresceu em L.A. nos anos quarenta. Nesses dias, o sonho do prince charming era servido em todos os cinemas, ao longo de múltiplas sessões diárias. Para Alice, que se servia abundantemente desse credo, a vida não era nada fácil. Mal vislumbrou uma centelha de charm num prince com pretensões de Alexandre – assentes numa mais do que questionável genealogia – não hesitou um segundo e lançou-se de coração em riste nos seus braços de marialva. E, crente num happy ending que julgou durar para sempre, arrastou-se numa via dolorosa pela degradação da fé no seu sonho de juventude. Mas esperou sempre a redenção (a dele? talvez a sua). Lutou pelo regresso ao happy ending, ou antes, ao golden beginning, invocando o sacrifício pessoal em nome de um amor mais alto, sublime e transcendente, que da parte dele foi uma simples e fugaz paixão, da parte dela uma arreigada e cega mitologia, impregnada na sua alma por ininterruptas missas de matiné cozinhadas com esmero e ciência pelos estúdios de Hollywood. Agora, indiferente aos seus suspiros de desalento, o prince charming zarpou numa nova cruzada, levando com ele a sua inocência de rapariga sonhadora brutalmente arrebatada. Mas ela não desiste, implora-lhe misericórdia, compreensão, amor ou uma réstia de esperança. E perscruta o seu silêncio, em vão: o telefone é um mero adereço. Hollywood não lhe inventou uma resposta de salvação.


A PLACE IN THE SUN (1951). Maravilhosa e salvífica, Angela era tida por deidade entre as criaturas inferiores. Lá no alto, piscando aborrecidamente no contraste das estrelas, conversava com os deuses, seus pares, em perpétua monotonia. O seu brilho majestático servia para relembrar aos mortais a distância que os separava daquele longínquo firmamento, onde ela, placidamente, era venerada sem o saber, ou sem se importar. Mas chega o dia em que um Ícaro desprevenido se cruza no seu relance. Por gozo e curiosidade (bálsamos contra o seu tédio infinito de divindade, tão graciosamente mascarado), ela atormenta-o com a sua beleza. Acabará por se apaixonar também. As paixões brutas são venenosas para quem conhece apenas as emoções puras. E Angela, ao viver as paixões arrebatadoras dos seres menores, destrutivas e consumidoras como a sua natureza mortal, abandona o seu lugar no familiar Olimpo burguês. O desejo da carne breve, que alimenta as vidas terrenas e que perdura um segundo no auge da sua beleza, fascina-a terrivelmente. Angela despenhou-se na terra imunda numa torrente de sonhos vãos, no desejo de encontrar Ícaro tornado Adónis pela sua graça. Quando o encontrou, pensou ser dele para sempre. Tinha razão. Adónis foi destruído, mas a dor que o seu amor gerou nessa fuga do Olimpo não desvaneceu, nem nunca desvanecerá. Até que o fim chegue.


THE LIVING END (1992). Luke desistiu de se conformar ao acordo de um mundo que toma por princípio universal o desalinho das paixões. Deixou de viver nessa realidade para passar a sobreviver no seu reverso. E paga agora o preço da liberdade, tornando-se alvo constante do ódio dos seres agrilhoados ao mundo. Jon foi expulso do paraíso quando descobriu ter contraído a doença que o votou à condição de pária. Também para ele não haverá sossego. O império da conformidade dita o extermínio dos inadaptados e o sacrifício dos excomungados. Encontram-se corpo a corpo nesta terra sem lei e juntos decidem percorrer o exílio, longe da normalidade. Pela primeira vez, Jon sente-se livre; como Luke, também pela primeira vez, se sente completo. Longe da civilização, descobrem as convenções mais puras, que derivam dos elementos – a terra, o corpo, a paixão – e fecham, nos votos sagrados da estrada, da carne e do fogo, uma vida a dois. Com a libertação do mundo dá-se a ruína dos ídolos. Só assim lhes é possível ter por aliança o revólver de Luke, outrora falo da morte que vigia a regra. Só assim a doença de Jon se cura pelo esquecimento. As inflamações do corpo, vergonha e tormenta da vida que abandonaram, consagram-se nos seus sacramentos diários, horários, naturais, pelos quais o fogo se consubstancia em carne. O regresso ao início primordial é impossível, mas a comunhão com o outro no fio da morte, no limiar do mundo, por uns segundos apenas, pela duração do jorro de prazer que electrifica cada milímetro de pele quando se prime o gatilho, justifica todos os votos de destruição, até dos próprios corpos, na senda da libertação.


HUNGER (2008). Cru até ao limite do suportável, e mais ainda. Da câmara não se espere qualquer preocupação em suavizar a brutalidade e o sofrimento. Ou a fé. Não seria necessária a cena do diálogo entre o Bobby e o padre para reforçar a convicção messiânica da luta política, apenas para a contextualizar. Tal como acontece com a tenebrosa voz-off da Thatcher, o mais frio dos monstros políticos que os guerreiros de carne exposta enfrentam. Até os cães que lhes ferram os dentes são mais do que cães, porque ao fim do dia olham para as patas sujas de sangue e hesitam antes de as lamber. Mas é da natureza humana (e da canina) ficar à mercê de monstros frios quando se sente o cheiro a sangue que faz esquecer os remorsos, esse elo frágil que suporta a sua humanidade. E, esquecendo, devora-se a carne exposta. É uma fome insaciável. A carne perece num segundo, ao contrário do desejo que é uma necessidade fisiológica, freada apenas pelo remorso. A fé é também ela insaciável mas, como nada a freia, dispara para o transcendente, e é capaz de fazer calar a própria fome. São monstros frios que se alimentam de coisas diferentes. Ou não assim tão diferentes, apenas separadas pelo remorso quando lavamos as patas do sangue imundo, igual ao nosso. Remorso ausente quando nos sabemos salvos, e observamos o espelho para descobrir as chagas de Cristo no nosso corpo.


SANGUE DO MEU SANGUE (2011).  Na porcaria dos arrabaldes de Lisboa vive gente que rasteja ao final da tarde para o barraco a que chama lar, entre os berros e as cenas de faca e alguidar dos vizinhos, avançando sempre em frente até à mesa de jantar onde têm uma sopinha de cenoura à espera, bem boa e à espera da filha que estuda na faculdade e é a única esperança de mobilidade social (é impossível não troçar e ter pena dos crentes da mobilidade social) faz horas em part-time num Pingo Doce dos subúrbios e namora com um segurança bronco que usa uma barbicha à Mário Machado e tem espasmos de racismo mal escondido, também à Mário Machado, o que é uma chatice para a Dona Márcia porque o seu mais novo namora com uma mulata da Buraca, e de facto é uma chatice porque a rapariga não gosta muito de sopa de cenoura. À mesa, a janta em aspas família fecha aspas burguesas, e como música de fundo os guinchos conjugais da casa ao lado e as novelas da televisão, as novelas gravadas na Venda do Pinheiro ou em Carnaxide, que contam histórias da Linha, da Baixa, da Costa, de um país fictício muito limpo e polido com os seus dramas hollywoodescos que ainda lembram as velhas comédias fascistas da Tóbis. E ali ao lado, num bairro dos subúrbios de Lisboa, uma mãe vai todos os dias para a cidade trabalhar como cozinheira no snack-bar do namorado, enquanto descasca as cebolas do almoço vê em reprise os episódios da semana (aflitiva a matiné, a tragicomédia em horário nobre) com a filha, o filho, o amante da filha, o namorado, a irmã, os amantes da irmã, a namorada do filho, o patrão do filho, o bairro, o país, a vida, a puta da vida. Que país xungoso em que a gente vive, feio porco e mau como a Itália de 76, e dez anos depois era Portugal – onde, para além desta santíssima trindade, se acrescentava ainda a pobreza no altar nacional – que vislumbrava devorador os rios de leite e mel da CEE, e lá deixava de ser materialmente pobre mas sempre feio porco e mau, como exemplar novo-rico acreditou na mobilidade social das nações, hahaha a mobilidade social, coitado, porque lhe deram o rendimento social de inserção europeu envolto num cardápio de designações eufemísticas para não ferir o orgulho, parca ajuda que desbaratou em roupa cara e carros topo de gama de obras públicas, mas quando chegava a casa ainda desancava na mulher e coçava os tomates à mesa de jantar. Sob a maquilhagem foleira continuava com o mesmo aspecto de meter nojo aos cães. Agora tudo acabou, voltou a pobreza, lá se foi o dinheiro para a maquilhagem, contentemo-nos com sopinha de cenoura e a herança em betão da epopeia comunitária, e lá vamos nós cantando e rindo a caminho do snack-bar descascar cebolas para o almoço.


MATA HARI (1931). 
– És um rapaz estranho… 
– Que te ama! 
– Amas? 
– Amo-te como se amam as coisas sagradas. 
– Que coisas sagradas? 
– Deus, a pátria, a honra; a ti.
– Venho em último? 
– Não. 
– Foi assim que o disseste. 
– Vens primeiro, antes de tudo! 
– Antes de tudo? 
– Sim.   
(E, divina, dita o seu cruel mandamento: que tudo seja sacrificado pela sua beleza). 
– Aquela vela que ilumina a virgem e que juraste à tua mãe conservar sempre acesa em sua memória; apaga-a. 
– Não me peças isso, tudo menos isso! É a santa chama que arde pela sua alma. 
– Amas-me acima de tudo? 
– Amo. 
– Apaga-a então.   
(A escuridão envolve-os, por fim). 

Bela, exigia dos homens a profanação de todas as coisas sagradas. Dos cumes da política e do Estado, os poderosos ofereciam-lhe os segredos e a verdade; os insignificantes entregavam-lhe os seus mitos, a sua devoção; os mais nobres, a virtude e a honra. Porque esta deusa era de carne, bela carne, a mais sagrada das coisas sagradas. O seu esplendor irradiava mais luz que os ícones dos altares, mais glória que os grandes ideais; o consolo do calor mundano à promessa vã da tranquilidade do espírito. Não admira, por isso, que tenha sido fuzilada por alta traição ao Estado, à Ordem e à Virtude. Ditou o destino que, ao contrário desses tais mitos, frígidos e distantes, tenha morrido porque se apaixonou por um reles devoto. Ele era simples carne, bela e sagrada, como ela. 


ALL ABOUT EVE (1950). Propagou-se o mito que as estrelas detinham o dom de assombrar, com uma luz semi-divina, os pobres espectadores que para elas ousavam olhar e às quais logo se rendiam incondicionalmente. Talvez assim fosse. Mas o mito escondia a outra face da verdade: era das mais profundas sombras, das suas próprias assombrações, que as estrelas destilavam a luz que encandeava as vastíssimas plateias. No mundo sublime e tenebroso em que viviam, mil espectros incansáveis e impiedosos perseguiam-nas com fome para as devorar. Nessa fuga, as estrelas esculpiam o brilho mais sofrido e esforçado, arrancado às entranhas da dor e do desespero. Era essa a origem da luz que tanto espantava os homens. Na sua áurea majestade, enquanto sorriam às multidões que em aplausos lavavam as suas almas simples, benzidas pela revelação de uma coisa mais bela que a única vida que conheciam, as sombras não cessavam de labutar na sua funesta missão: o ciúme, a inveja, o medo, como ratos demoníacos, roeram em Margo as forças que garantiam a sua sobrevivência interna e o seu desmesurado brilho no mundo dos inocentes. Já não quis fugir mais e viu-se afogada na escuridão. Por uma última e triste vez, instalava-se no seu pedestal, sem reconhecer que era assombrada pelo retrato da sua juventude, sem perceber que era ofuscada pela fulgência postiça de um vulgar diamante. 


MOONLIGHT (2016). O rapaz não tem nome, aceita os nomes que os outros lhe dão. Mas guardará um, como recordação do momento em que, ainda folha em branco, espírito de barro por moldar, acordou nele uma paixão fatídica. O rapaz cresceu, e com ele a paixão, que no novelo do seu carácter era simultaneamente fogo anímico e inefável tormenta. Entrelaçou-se no fundo de si em variações de resistência, resignação e esperança, dando-lhe uma constituição frágil e periclitante, prestes a ruir, a explodir, ou a subsistir por mil anos. No casulo que aquela força reprimida tinha forjado, havia uma firme aceitação do destino, à prova de ferro, à prova do mundo, imune a todos, menos a quem nele tinha inscrito a paixão nas primeiras linhas do livro da vida. Perante essa presença, todas as partículas do seu ser vibravam, troando uma energia seminal. Quando sentiu a mão dele pousar na sua pele, estremeceu nas fundações do seu casulo. Suspenso no contorno da luz azul, rendeu-se ao anjo exterminador que tinha plantado a semente do seu flagelo. Este, com enleio e destreza, trinou o prometido e secretamente esperado canto no seio do rapaz. Nada voltaria a ser igual. A muralha fora desfeita e apenas poderia ser substituída por outra de incalculável dureza. O choro da paixão reprimida, contida na ebulição de um espírito que cresceu embalado por um único e finíssimo fio de luz, fora tornado carne e semeado no solo fértil, acariciado pelo luar morno, cúmplice. No momento seguinte, o caminho do rapaz-fortaleza em desconstrução, mais instável que nunca, decidir-se-ia pela fortuna do projecto espalhado na areia junto ao mar. Se estimado e nutrido, cresceria em beleza e vigor quase irreais. Se traído, não restaria mar na terra que preenchesse as crateras do cataclismo, e só muitos anos depois, percorridos inconcebíveis desertos, ver-se-ia na água turva o reflexo distante do ser original. Mas então, perscrutando nas fendas mais fundas do abalo, o rapaz-destruído poderia ainda encontrar vestígios, ténues mas vivos, daquela primordial canção gravada em si.


JACKIE (2016). Quem é esta gente? O que esperam de mim? Será que me amam ou que me odeiam? Estarão ansiosos por se atirarem aos meus pés ou por me cravar um punhal no peito? Será que buscam em nós inspiração para os feitos sublimes da vida ou um alvo onde desferir a raiva acumulada por tantas frustrações? É esta procissão uma via dolorosa que reúne o rebanho para velar o seu messias ou a turba que se amontoa para assistir à encenação do sofrimento humano? Estão na plateia, à margem da História, esperando o veredicto das moiras para julgar os seus heróis, elevando-os a semi-deuses ou votando-os ao esquecimento do Letes. Não imaginam que entretecer o fio da imortalidade dos heróis é, em si, uma ventura tão audaz como os próprios actos que os tornam heróis. E coube-me a mim, privada do meu galhardo cavaleiro antes do tempo, garantir-lhe passagem para o Olimpo. Enquanto lá fora eles são totalmente carne mortal, enquanto ele, já morto e frio, é totalmente espírito deífico, oscilo nas oficinas da matéria e da memória, laborando entre os sentimentos que me aproximam deles e os preceitos que regem as normas celestes. Este é o meu mais crucial e derradeiro papel. Como Homero cantou Ulisses, a minha epopeia será esta. A marcha fúnebre dele será a entrada gloriosa nos anais da História. E assim, vencendo o olvido dos comuns, terei criado o mito, brilhante Camelot encenada na Broadway do nosso tempo. Todos o amarão. E eu poderei, enfim, descansar e esquecer a minha dor.


SUBMARINE (2010). Há tardes em que ele vai à praia e fica a ver o sol pôr-se no horizonte. E rala-se com as angústias ontológicas da humanidade, ele que, enquanto adolescente, as vive à flor da pele muitas vezes exacerbadas. Reflecte sobre a efemeridade da existência, ou como ser popular no liceu. Sobre a unidade necessária do Cosmos infinito, apesar das tendências que o afastam da rapariga rebelde da turma, sociopata e pirómana, mas pária como ele. Da fragilidade da superstrutura social, abalada com profundos golpes de sentimentalismo nas suas instituições seculares, como o casamento dos seus pais. Há a cena em que ele e a rapariga passam dias infinitos a vadiar no mais puro e marginal estoicismo mundano. Mãos dadas à beira d’água, e rebentar foguetes no céu industrial sem estrelas, espreitar por um caleidoscópio e multiplicar o momento, carpe diem vezes seis – na cara dela os óculos de corações vermelhos à luz da pólvora a faiscar. E pensar que tudo começou com a polaroid de um beijo forçado tirada ao rancor de um affair atraiçoado.


UGETSU MONOGATARI (1953). Quem Miyagi vê da margem, atravessando o Letes, não é já o seu marido e pai do pequeno Genishi. Ela, segurando a criança ao colo, fica na margem do mundo dos vivos, despedindo-se daqueles que ousam enfrentar a morte, namorando fantasmas que coabitam os dois lados do lago. Experimentarão, pois, mortes diferentes. Miyagi perecerá no inferno da vida terrena, do qual os homens escapam durante preciosos mas fugazes instantes. Quando ela, Genjurō e o filho saciam a fome de muitos meses numa noite à beira da guerra, são felizes. Na manhã seguinte, tudo voltará ao caos primordial que os acompanha desde o berço. O fim chegará como uma tempestade de Verão. Não há glória nem sentido, apenas um terror instintivo que vibra na extinção do sopro. Miyagi sucumbe no gume da lança que foi forjada para morder o aço das armaduras, não o ventre de quem carrega o filho para um lugar seguro. Estava desarmada e fraca, a estrada não era perigosa; mas o céu é imprevisível e derrama a dor sobre a terra como um aguaceiro. Para os simples a morte é uma rasteira, absurda e breve, à imagem da vida que lhes é concedida.


UGETSU MONOGATARI (1953). Para os audazes a morte reserva mil mortes. Genjurō deixou a mulher e o filho na praia dos vivos. O nevoeiro do lago, fronteira do destino antes de ser desafiado, trouxe-lhe um último aviso e premonição do delito. Rompeu o véu; pela sua arte e mestria cumpriu a fuga da miséria, pontuada por fulgores de alegria, para uma promessa excedida de libertação e glória. Pelo que criava, afastava-se do pó. Na ponta dos dedos estava o dote da transmutação do barro imundo em testemunho universal de beleza. Genjurō impressionou os deuses, como nenhum mortal deve ousar fazer. Não lhe recusaram a libertação das teias da mortalidade. Mas Genjurō ignorava que não existe nas coisas do alto natureza diferente da que conhecera na sua vida de simples; apenas na ordem de grandeza que separa os homens dos deuses. Os homens são acariciados por breves luzes de felicidade, e aguarda-os uma morte breve, uma única morte: o romper do seu fio de mortalidade. Os entes que se tornam variações do absoluto conhecem a exaltação do espírito e os sabores do eterno, e pela sua condição de seres eternos provam as infinitas variações da morte que garantem o equilíbrio das forças universais. Miyagi teve uma morte breve e absurda, tombando, misturando o seu sangue com a lama da estrada. Genjurō teve como sua a morte da mulher, desferida na sua alma sofredora como o desmoronar de um castelo antiquíssimo; teve como sua a morte da miragem de glória, que regressará diariamente como uma maldição do quotidiano, até ao final dos tempos; teve como sua a morte da possessão da beleza, que desejou sem remorso. Teve e terá todos os dias de suportar os infinitos da morte, resistindo a ela, a todas elas, desesperadamente e no limite das suas fraquezas, brandindo no vazio uma arma que não é sua contra um destino que nunca devia ter sido o seu.

Pedro Leitão

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