O tamanho das coisas

- Já foram maiores, os travesseiros. 

Uma frase que ouvia muitas vezes lá na pastelaria – famosa, por sinal - onde trabalhava. E por mim tudo bem. Vivo tranquilo com a ideia de que a infância e a terceira idade se assemelham não só na incontinência como também numa certa tendência para deturpar a dimensão das coisas. Quantas vezes me vi a regressar a sítios onde tinha estado quando era puto e dei por mim a perceber que não são tão grandes como os imaginava. Da mesma forma que os mais velhos tendem a pensar que no seu tempo os preços eram mais baixos, os políticos eram mais honestos e os travesseiros eram maiores. 

Dada esta lei da vida, não me chocava nada ser confrontado várias vezes com a referida acusação – “já foram maiores, os travesseiros” – aos sábados e aos domingos, entre as 11 e as 20 horas enquanto tentava ganhar uns trocos para poupar uma parte e estoirar a restante em imperiais pós-laborais. Como era um nobre trabalhador/estudante de comunicação, sempre que me via perante um destes saudosistas do pastel, convencia-me que afinal a teoria da comunicação institucional poderia de facto servir para alguma coisa e todo eu me transformava numa estratégia de marketing ou de comunicação política: 

- Olhe que não, meu/minha caro/a, olhe que não. A grande particularidade desta casa é a ancestralidade das suas receitas, que se mantêm perfeitamente inalteradas desde a sua origem. É essa a magia de cada bolo. Comê-lo hoje ou em 1925 é exatamente a mesma coisa! 
- Então como é que me explica que às vezes eu peça seis travesseiros que me cabem na caixa e ainda sobra espaço e tempos houve em que a mesma caixa com os mesmos seis mal fechava, tal era a sua frescura e suculência?
- Sabe, essa questão, ainda que por vezes possa ser frustrante, é um dos mais belos traços identitários de alguns dos nossos bolos. Pois é o garante de que são feitos à mão e, digo-lhe, não há régua capaz de medir aquilo que se sente quando a mais fina e delicada folha de massa folhada se derrete na boca em conjunto com a divinal combinação que é o nosso creme de amêndoa e ovo. 

Felizmente, os velhotes com quem tinha estas batalhas argumentativas eram pessoas que só queriam apreciar sossegadamente o prazer de se sentarem a comer um bolo e beber um chá, e portanto rapidamente se fartavam de mim e da minha insolência, e também porque eu, que até tinha fama de ser simpático e atencioso, acabava sempre por arrancar um sorriso e um “Tá bem” aos velhotes, assim como quem diz “Bah, o sacana do puto é espertinho”. 

Apesar de tudo isto, havia algo de muito desconcertante e particular naquele “Já foram maiores, os travesseiros” que àquela hora de fecho de um domingo chuvoso me fez levantar os olhos do balcão que estava a começar a limpar. Havia naquela voz uma certa superioridade, uma certa insolência tão própria de alguém que – confirmei quando levantei os ditos olhos – era pouco mais velho do que eu e não um velhote simpático e bochechudo. 

À minha frente, 10 minutos antes da hora de fechar a porta, tinha dois jovens a chegar aos trinta e que aparentavam ser um casal, já que se encontravam de braço dado. Ambos com ar de quem ainda não sabe que terá uma criança mas já desconfia de que esta será intolerante à lactose, ao glúten, à luz solar, ao contacto humano, à música pop e a todo o conteúdo televisivo que não seja emitido pela 2. Ambos, ainda, com ar de quem já está a pensar em chamar a gerência ainda antes de entrarem em qualquer estabelecimento comercial. 

Ainda assim, e mesmo que já me encontrasse com o fogo no cu para ir para casa, decidi ignorar todos estes meus preconceitos, pus a minha cara de plano de marketing e encetei o diálogo que há pouco reproduzi. Se normalmente é a minha piada a safar-me, desta vez não caí em graça, e suspeito que aos olhos destes jovens nem engraçado fui: 

- Espero que tenha a noção que esse seu palavreado até pode resultar com os mais distraídos, mas nós não somos estúpidos. Por isso agradecíamos que não nos tratasse como tal. Ainda por cima os travesseiros que nos serviu estão frios. Não acha vergonhoso? 
- Realmente eles são melhores quentinhos. Mas note que são sete e cinquenta e cinco, fechamos às oito e a última fornada saiu por volta das seis e meia. 
- Então e onde andam os pasteleiros? 
- Já saíram. 
- Eles que voltem. 
- Amanhã às cinco da manhã. 
- Eu exijo travesseiros quentes. 
- Não os tenho. 
- Faça-os. 
- Não sei como. 
- Como não sabe? 
- Sou empregado de balcão, não sou pasteleiro. 
- EU EXIGO OS MEUS TRAVESSEIROS MAIS QUENTES. 
- VAI CHAMAR O PATRÃO OU QUER QUE EU SALTE DAQUI PARA AÍ, SEU ANIMAL? 
- CHAME-O LÁ. 

Nisto, e antes que o patrão pudesse aparecer, entram pela porta todos os velhotes e velhotas a quem ao longo do fim-de-semana fui negando que os travesseiros já foram maiores, todos eles armados de rolo da massa numa mão e travesseiro na outra. Antes que os dois jovens com quem estava a digladiar-me tivessem tempo de fazer o que quer que seja, estes velhotes começam a agredir violentamente (e justamente) estes dois demónios enquanto gritam os “VOCÊS. NÃO. TÊM. IDADE. PARA. CONFUNDIR. O. TAMANHO. DAS. COISAS!” enquanto os crânios fraturados salpicam de frutos do bosque os bolos expostos nas vitrines, que entretanto tinham ficado abertas. 

Mortas as carraças, diz-me uma das velhas enquanto limpava as gotas de sangue da testa: 

- Os travesseiros já foram maiores, rapaz. 

Pedro Quirino

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