Memórias do Cárcere (Ou: o que ainda não recalquei enquanto antigo aluno do IST)

Quando o editor deste blog me colocou um convite para elaborar um texto para este espaço, fê-lo mais ou menos da seguinte maneira: "Se alguma coisa te tiver chateado, escreve sobre ela que eu publico." Portanto, só faria sentido que tal levasse ao registo das recordações mais traumáticas que um antigo estudante do Instituto Superior Técnico adquiriu durante a vida universitária. Desconheço se a experiência por que passei é semelhante à que se encontra noutras faculdades (de engenharia ou não), mas se assim for, tanto melhor para quem se revir neste texto.


Para contextualizar, estive no Técnico durante 5 anos, onde tirei engenharia biológica. “Biológica? Tem alguma coisa a ver com animais?”, questionará o caro leitor. Nada disso. Para quem não sabe, engenharia biológica consiste no estudo e aplicação de seres e ferramentas biológicas de pequena dimensão (de enzimas a leveduras) nas áreas da indústria e investigação. Daí o “biológica”. Agora, o estimado leitor perguntar-se-á, “Mas por que raio é que alguém haveria´de querer tirar isso?” Resposta: Quando chegou a altura de escolher o que é que gostaria de fazer até meter os papéis para a reforma, vi que este curso tinha engenharia genética nas cadeiras leccionadas e, como tinha visto o Gattaca uns meses antes, pareceu ser uma coisa gira onde me meter. Não foi, e se pensava que ia desenvolver testes em diversas variedades de símios e roedores, as aulas de laboratório não consistiam mais do que fazer com que uma ou outra espécie mais comum de bactéria passasse a produzir gelano (nhanha, isto é). Claramente que foi uma decisão irresponsável. E foi irresponsável porque, como tanta gente que entrou comigo, desconhecia do que é que, de facto, o curso se tratava. A verdade é que aos 18 anos não sabemos aquilo que queremos, pela simples razão de que não estamos informados. Se no período em que estamos na escola, ao invés de serem dadas aquelas disciplinas com uma utilidade superficial (como formação cívica, área de projecto ou estudo acompanhado), os nossos horários fossem ocupados por cadeiras que chamassem pessoas de todos os cursos, para darem uma introdução do que estes consistem, assim como áreas de progressão de carreira, empregabilidade e gamas de ordenados, as taxas de prescrição de anti-depressivos não seriam tão elevadas no nosso país.

Mas falando da faculdade em si, aqueles que pretendem ter uma descrição sucinta do que é a vida no IST devem passar pelas salas do Pavilhão de Civil em dois períodos do ano: Dezembro e Maio, entre as 9 da noite e as 7 da manhã. Nesta fase é quando os grupinhos se reúnem, desesperados, para entregar um daqueles 2 ou 3 projectos semestrais de véspera, a que não se conseguiram dedicar convenientemente, tal era a quantidade descomunal de trabalho constituído por relatórios, testes e apresentações, que se foi acumulando. Nestas noites, a aflição é proporcional ao número de latas de Red Bull e cafés que se encontram sobre as mesas. É um cenário comovente de se observar, o do aluno que está a cair para o lado, com umas olheiras do tamanho de buracos de toupeira, enquanto o colega de grupo dá-lhe uma cotovelada e diz “não durmas, pá!”. Como nos filmes de guerra, adormecer no IST nestas ocasiões é o equivalente a morrer. 

Há semelhança do que acontece no Breakfast Club, no Técnico há uma série de estereótipos ao qual cada aluno se pode enquadrar, em cada turma. Há “o gajo fixe”, “a rapariga hipster”, etc. No meu caso, eu era o choninhas que estava em cada aula, na primeira fila, 20 minutos antes dela começar (desconheço o termo académico para isto, mas creio que não seja bonito). Contam-se pelos dedos de uma mão (vá, talvez duas) o número de aulas a que não fui em 5 anos. “Epá, este gajo então mal precisava de estudar”, dirá o ilustre leitor. Errado. A única coisa que toda esta frequência trouxe foi um Erlenmeyer pintado a tinta dourada com “ponta-de-lança” escrito por cima, que os meus colegas decidiram dar como um prémio no jantar de finalistas do último ano. Hoje percebo que, se uma pessoa não está motivada para ir às aulas, independentemente do sítio onde fique e da sua assiduidade, mais vale estar em casa a procurar aprender de outras maneiras.


No entanto, ter um lugar tão privilegiado permitiu-me assistir, em primeira-mão, a alguns dos maiores exemplos que demonstram a veracidade dos rumores de exigência que circulam sobre o Técnico. Não me refiro só aos professores que dizem, com um agrado imenso, "Eu não vou pôr informação nos slides, que é para vos obrigar a vir às aulas" ou outros que afirmam, com o maior sorriso na cara, "nunca vos irei dar um 20, porque 20 quer dizer que vocês sabem tanto como eu. E ninguém sabe tanto como eu." Refiro-me a docentes com a mania de que as suas cadeiras eram mais importantes que as outras e ameaçavam "Se eu percebo que vocês decoraram a resolução deste exercício e que, no exame, não põem ao lado o porquê de estarem a desenvolvê-lo de uma determinada maneira, levam 0 nesta questão." E davam, redondinho e sublinhado! E se fôssemos à revisão de prova e tentássemos refutar que tínhamos feito bem o esquema gráfico e posto a equação correcta, quase a implorar de joelhos por 1 valor, gritavam bem alto, com os olhos avermelhados e um fogo satânico a surgir-lhes por trás: "VOCÊ NÃO SABE!" E acabava ali a discussão, dávamos meia-volta, cabisbaixos para os nossos colegas que haviam testemunhado aquela triste cena, e saíamos da sala a engolir o amargor da humilhação. 

O que tem mais piada nisto é que me contaram que, numa cerimónia qualquer, uma das pessoas no lugar de topo do Técnico disse no discurso de abertura "e os professores são tão bons, que temos alunos que estão dispostos a ficarem no chão ou à porta da sala em vez de perderam a aula, quando os lugares escasseiam." Creio que só ele é que não percebeu que o que estava de facto a dizer era que as salas eram pequenas para tanta gente que andava a reprovar às cadeiras. 

E que dizer dos instantes surreais que a faculdade nos reserva? Estar no Técnico durante 5 anos é presenciar situações que poderiam servir de modelo para um sketch dos Monty Python. A melhor que assisti foi numa aula de uma espécie de matemática (com um nome todo pomposo cujo mero acto de escrever me é fastidioso) onde o professor, acabado de corrigir um exame onde alguém tinha cometido o pecado cardinal de fazer uma divisão por zero, virou-se para nós e disse: "Eu juro que não sei como é que é possível alguém no 2º ano de faculdade fazer divisões por zero. Deve ser alguém que pega numa colher para levá-la à boca e não acerta com o sítio. E depois ainda pensa 'Onde é que está a minha boca?!'". Nem em sonhos tinha visto um professor a chamar retardado a um aluno diante de um auditório cheio, e ainda pôr os outros a rirem-se com isso.


No entanto, também tive excelente docentes, pessoas que usavam bastante tempo das suas aulas a fazer exercícios e ainda davam aulas de dúvidas, sempre a incentivarem à participação dos alunos. Muitas vezes diziam, de uma forma cúmplice que revelava um extraordinário sentido de empatia para connosco, “olhem que estou com vontade de pôr isto no exame”, o que nos ajudava imenso a saber quais daqueles 763 slides de matéria é que deveríamos tomar mais atenção. 

Depois, finalmente, chegava o dia do exame, 3 horas em contra-relógio, antecedidos por uma conversa de corredor onde nos fingíamos calmos, embora estivéssemos com os nervos completamente a faíscarem por dentro. Vinha o enunciado e reparávamos que aquela matéria que tínhamos posto de parte para nos concentrarmos nas outras era justamente a que englobava a pergunta de maior valor, ao passo que a que sabíamos na ponta da língua, porque era habitual sair em todos os exames de anos anteriores (o instrumento de estudo que acabávamos por dar mais relevância), nem sequer era referida. 

Claro que, ao fim de um tempo, apenas encolhíamos os ombros. É o mais importante que se aprende no Técnico: a lidar com as desilusões desta vida, a não tomar nada como garantido, e ainda a aprendermos a rir disso. É por isso que qualquer antigo aluno dirá que se esqueceu de 90% do que aprendeu por lá, mas que foi dos melhores sítios que o ajudaram a formar-se enquanto pessoa. Mais do que as festas efémeras e amizades duradouras, não será por isto que chamamos à faculdade o tempo das nossas vidas?

Duarte Mata

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