Fontarcada
- Capitão! Os comunistas tomaram de assalto o torreão das Virtudes!
Com o embate provocado pelo sobressalto, na mesa ficou um lago de vinho e de papel amarelo de jornal, no chão um copo partido. Aquele anúncio interrompera com estrépito o seu ritual vespertino. Sentava-se sempre na mesa mais recatada da esplanada da Cantareira e pedia meio copo de tinto com gelo e uma garrafa pequena de gasosa. Depois abria sobre a mesa as asas de papel do Comércio de um qualquer dia sorteado de cento e cinquenta e um anos de arquivo do periódico. Divertia-se naquela tarde com as notícias, carcomidas pelo bicho, do dia 29 de Agosto de 1870, enquanto rosava os lábios com o suave xarope do refresco e se reconfortava com a platitude da baía à sua frente. Essa preciosa paz foi rasgada por um bote que acelerava vindo da outra banda, e que entrara no ancoradouro com o presságio de um desastre.
- Que mais sabes, Mestre Jonas?
- É tudo. Mal vi a bandeira negra hasteada na capela de Santa Catarina telefonei para o convento e essas foram as únicas notícias que me deram. Depois meti-me na água e vim a correr. Para Monchique?
Ele confirmou o destino com um aceno firme. O barco saiu do portinho da Cantareira e começou a voar sobre o espelho de luz do estuário. Do areal do Cabedelo largaram em revoado alguns mergulhões assustados com o quebrar das águas.
Os olhos do Capitão estavam presos num ponto distante, para lá do arco da ponte. Mestre Jonas manejava o motor com destreza, galgando a ondulação a seu favor de forma a bojar no dorso da corrente. Iam a bordo do Santa Marta, o bote conduzido há décadas pelo hábil comandante a quem cabia a honra de transportar a imagem de São Pedro na procissão que todos os anos o santo fazia até ao mar.
A noite reduzia o poente a uma luz de lamparina e já as luzes do viaduto de ferro, junto ao cais de Monchique, se acendiam. Passavam agora sob o grande arco branco da Arrábida, onde o leito do rio se torna mais sereno. O Santa Marta desenhou um arco desde a ponte até à margem, aproximando-se rapidamente do cais. Quando a distância o permitiu, o jovem capitão agarrou uma corda e saltou para terra, deixando o Santa Marta a debater-se com as vagas de limo e de lixo que boiavam à tona. Ainda ouviu Mestre Jonas pronunciar um qualquer voto de protecção por mercê da Virgem, mas corria já para a estrada e a prece foi abafada pelo barulho da envolvente. Tornou para as vielas do cais e chegado a um portão velho de fole, de tinta cascada e muito grafitado, bateu com força três vezes. O Santa Marta fitava-o do rio como se aguardasse ordens suas. Quando um eléctrico passou na marginal e interrompeu o contacto visual entre os dois, o portão abriu-se.
- Preciso de a levar, disse.
- Com certeza. Está onde a deixou da última vez.
O homem passou-lhe as chaves. Ao fundo do armazém estava uma motorizada vermelha, de aspecto cansado, ruída pela ferrugem e amolgada na lateral. Saltou para o selim de couro e por instinto, enquanto girava a chave na ignição, golpeou a sua montada a toque de esporas. A resposta da máquina veio numa expectoração de carburador que fez o homem da garagem temer pelo pior.
- Capacete, não leva?
- Hoje não. Ponha na conta.
- E ponho a conta no lixo. São três avé-marias de penitência, capitão.
- Chego lá acima em menos de duas.
E batendo continência girou o guiador e saiu pelo portão. O homem viu a scooter rodar na direcção contrária ao rio. “Vai subir a Restauração montado naquele frangalho”, pensou o homem. “Nem no tempo de um rosário lá chega”.
Mas a máquina escondia uma potência admirável, alimentada a suplementos de fé ou coisa que o valha, e em menos de nada já ele estava a meio da rua, no varandim sobre o rio que se abre entre a folhagem dos plátanos. O capitão viu o seu alvo ao longe: um arraial de gente e luz no topo do torreão que sobranceava o morro. Se seguisse em direcção às Virtudes seria imediatamente avistado. O melhor seria circundar a penha e içar-se pelo miolo do casario. Tornou então pela viela que corre na sombra do velho convento em ruínas e num instante estava de novo junto ao rio, frente à Alfândega. Com a entrada desenfreada na estrada, por pouco não esbarrou contra o eléctrico que cruzara há pouco frente ao Santa Marta. Respirou fundo, apurou os sentidos. Refeito do susto, benzeu-se e beijou o medalhão que trazia no peito. Arrancou pela rampa de Miragaia, contornando a igreja, e começou a escalada até ao torreão.
Era já noite plena e uma lua cheia reinava num céu sem estrelas. Os sinos tocavam a finados em São Pedro de Miragaia e a cadência funesta, ao invés de esmorecer-lhe o espírito, revigorou-o. As casas dispostas em socalcos alcantilados sobre o rio, em cerco perene e numa guarda fechada sobre si, escura e hermética, inspiravam a vertigem de se posicionar sobre um castelo inexpugnável, que embriagava de soberba os seus habitantes nas noites claras e mornas como aquela. Por entre o rebate dos sinos de São Pedro ouviu um gemido de violinos, como expressão do esforço que a motoreta fazia em escalar a calçada do Gonzaga, encosta acima. E logo o sopro de um clarinete que lhe chegou como a voz de um mensageiro celeste que revela uma missão de fé. Encheu o peito com o ar quente da noite e olhou em volta. No cenário que se abria sobre o rio à sua direita, ouviu a formatura de uma orquestra completa, e percebeu ser ele o maestro que inflamava o turbilhão de violinos e cordas, como um general que lidera o exército para a derradeira batalha, como o guerreiro montado frente às hostes da santa cruzada.
Olhou para cima. Lá estava o torreão onde, percebia agora, decorria uma terrível e sinistra dança, um cerimonial herético que só ele poderia parar. A orquestra ribombava na noite dentro de si. Chegou ao topo da calçada, a São João Novo, e teve de se deter porque a sinfonia inflectira de súbito, a cavalgada de violinos arredara num sopro e, solenemente, um único intérprete ocupava agora o palco, fazendo chorar o seu violino a cada movimento que o arco descrevia. Ele contemplava no chão os estilhaços da cruz de São João Novo, que durante décadas coroara a fachada da igreja. Algum capricho do destino a fizera despenhar-se na praça, onde ainda permanecia, desfeita em estilhaços, velada pelas fitas de segurança da polícia municipal.
De novo benzeu-se e ao percorrer os pontos cardeais da santíssima trindade sentiu crescer em si uma vaga impetuosa que, por um misterioso efeito de transmissão, espevitava a cilindrada da motoreta. Arrancou, disparando calçada acima, fazendo um esforço por cobrir a tosse convulsa da máquina e evitar o alerta da torre. Passava agora por uma viela de casas estreitas, algumas somente fachada, notáveis ruínas. Foi de uma dessas máscaras de pedra rugosa que saiu uma mão lançada ao seu ombro. Com o susto quase caiu da mota. Parou à frente, tomando guarida num umbral sem porta.
- Menino Manuel, sou eu!
- Frei Jacinto!
- Sobe por aqui. Os comunas têm uma vigia montada no cimo da rua. Já rebentaram com vários dos nossos.
Sem hesitar um momento, encostou a scooter na reentrância escura de onde surgira aquele braço amigo. O frade conduziu-o por um caminho estreito encravado no leito da muralha. O breu do corredor era rompido apenas por um finíssimo reflexo de luar que partia do cordão de prata do frade, crepitando no passo felino com que o velho monge fintava as sombras. Manuel seguia-o com dificuldade na noite, preso apenas ao ténue resplendor do cordão.
Deram então com uma parede alta e Manuel pensou se a escalariam. Nos interstícios das pedras cresciam fetos e um lodo pestilento cobria toda a superfície. Seria impossível escalar aquela barreira gelatinosa. A voz do frade veio acordá-lo destas considerações tácticas.
- Segue-me, rapaz. Por aqui.
O frade puxou o seu cordão do interior do hábito, onde, junto à cruz, preso aos anéis de prata, pendia uma chave. Usou-a para abrir um portão velho, até então oculto na penumbra do fosso. Uma escada seguia junto ao muro até ao topo. Ao chegarem ao último patamar, nem aqui descobriram um vestígio de luz para os aliviar. Seguiam por um caminho ladeado de silvas e de entulho, pontuado por gárgulas de pedra que apenas conseguiam descrever em contraste com o negro do céu. Junto ao chão corria um fio de água fedorenta, tingida com a mesma luz pálida que adornava o pescoço do frade. Estavam nas costas de um pequeno casebre de pedra. Três degraus davam para uma porta gradeada de ferro. O frade tirou a chave de ferro do interior do hábito e fê-la rodar no ferrolho, mas desta vez a chave resistiu aos esforços da mão beneditina. O frade debateu-se com a fechadura teimosa, forçando a chave, fazendo estremecer a porta. Na sua cara surgiram sinais de tensão e de cansaço, e algumas linhas cavadas, desenhadas pela raiva, que lhe deram por instantes uma aparência grotesca.
- Maldita corja. Não respeitam ninguém. Indigentes e criminosos, esses filhos da puta.
E sem mãos que, pela bênção, lhe expiassem a falha, acrescenta num sussurro, “Deus me perdoe”. Manuel perguntou-se se a surpreendente agilidade do frade viria afinal de uma fúria murmurada entredentes em muitas noites de insónia no convento.
- Animais sem alma! Não sabem o que custa a vida. Atentam contra tudo, contra o trabalho, contra a lei, contra a fé. Que uma bomba os carregue ao inferno!
A fechadura cede, por fim. O portão abre para uma passagem baixa, que os obriga a curvar para a transpor. Estão numa antecâmara de pedra onde se ouve o barulho de água a correr. Uma porta de chapa entreaberta coloca-os novamente nas ruas da cidade.
Não há ninguém, a calçada está deserta. Atrás de si está o Fontanário das Taipas, de onde emergiram para aquele cenário de aparente quietude, certamente dissimulada. Frei Jacinto informa-o que o tem de deixar e entrega a Manuel a missão que ele já sabia ter de cumprir. “Defende a tua igreja, livra-nos desta peste!”, e imediatamente larga a correr para o convento, de onde, prometera-lhe, traria ajuda.
Chegado à esquina da rua, viu no reflexo da janela em frente o que o aguardava. No topo do torreão, perfeitamente visível daquele ângulo, uma fogueira iluminava faixas com palavras de protesto, empunhadas por seres de cara pintada de negro, de vozes estridentes que silvavam ladainhas repugnantes, segurando lanças que envergavam as bandeiras das hostes infernais, como armas estacionadas aguardando a estocada fatal. Com esforço, Manuel tentou ler aquelas runas diabólicas, grafitadas a vermelho e negro sobre faixas brancas, onde descobriu palavras indecorosas dispostas à toa, cidade de todos, igreja vendida, turismo fora, etc., numa estranha liturgia que serviria apenas, sabia-o, para adornar intentos mais profundos e mais sinistros.
A torre partilhava um largo pátio com um palacete adornado em cantaria ao estilo burguês de oitocentos. Manuel estudava os elementos escultóricos da fachada, ornamentos, frisos, reentrâncias, num exame arquitectónico que lhe permitisse descobrir uma escada até ao topo. Identificou o primeiro degrau. Agarrou o gradeamento de ferro das janelas do piso térreo, pontuado por agulhas debruadas de lis, e lançou-se para a varanda do primeiro andar. Junto desta, um lampião de rua permitiu um segundo degrau, alcançando assim o frontispício triangular. Com o pé direito apoiado no friso da coluna da esquina, conseguiu agarrar o varandim de ferro do topo. Sentia nos tendões dos antebraços todo o peso do seu corpo e a vibração das barras de ferro do varandim, que a cada segundo rangiam perigosamente, percorrendo-os até ao centro do seu torso. Olhou para o céu, viu a noite entrar-lhe no estômago quando forçava a alavanca dos ombros e o corpo subia ao nível do telhado, primeiro os cotovelos, depois os ombros, por fim o peito, e já estava dobrado sobre as telhas que cheiravam a terra fresca. Recuperou o fôlego quando libertou todo o firmamento que tragara para anular as limitações do corpo. Conquistara o telhado por fim, e uma posição de vantagem sobre o inimigo. Rastejou pela costura das lajes até à crista do telhado. Para seu horror, viu nitidamente pela primeira vez o palco de batalha que teria de enfrentar. Aguardou, apavorado, sem saber o que fazer. A noite estava morna e quieta, imperturbada nas alturas excepto pelas ondas vagas e inaudíveis desta pequena comoção terrestre que zurzia no topo daquele torreão.
Manuel esperava um sinal. Imaginou ouvir a melodia triste que o enterneceu ao descobrir a cruz estilhaçada na praça, ouvia-a cada vez mais claramente, nítida como o voo de um morcego que, errático, desenhava no céu uma dança serena. O morcego rodopiou na agulha de ferro da claraboia, no centro do telhado, e pousou por um segundo, breve mas luminoso, no anel de ferro que encimava a agulha, e que sustentava o seu mais alto espigão. Balouçou de asas apertadas, acompanhando a cadência triste do clarinete, mas quando as voltou a abrir corria novamente a horda majestática de violinos, fazendo acordar todo o exército celeste que aguardava o comando do seu nobre senhor. Revelada pela graça de um animal ímpio purificado pela canção da noite, percebeu que aquela seria a lança que usaria na batalha.
Subiu à coroa de vidro colorido da clarabóia e com o peso do corpo fez quebrar a agulha na base consumida pela ferrugem. Empunhou o gládio à luz da lua cheia e sentiu o seu peso maciço percorrer-lhe a teia do esqueleto e endurecer os músculos estruturais, o corpo tenso e preparado para investir.
No topo do torreão, as violas e os protestos estavam agora calados. Tinham topado a silhueta suspeita que trepava o telhado. Manuel percebeu que o viam e desceu a água do telhado voltada a sul, fitando o espaço vazio entre ele e o torreão, feito campo de batalha.
- Usurpadores! Essa casa não vos pertence. Abandonai imediatamente a torre!
O grupo de rapazes e raparigas olharam atónitos aquela figura que lhes parecia da sua idade mas coberto com o peso de muitas gerações, e que apontava ao local onde estava uma estaca de ferro. Olharam entre si, sem saber como reagir. Então atrás deles alguém falou, alguém que acabara de subir e avançava decidido para enfrentar o estranho vulto no telhado.
- Fontarcada!
A pesada espada de ferro cedeu com o troar do nome. Manuel não esperara ouvir aquela voz.
Uma das raparigas que o acompanhava na torre perguntou: “Bernardo, quem é aquele?”.
- Este, Inês… Ouçam todos! Estamos perante a digníssima figura de Manuel Gregório, senhor de Fontarcada, cruzadista contemporâneo, ginete de motorizada e protector da santa madre igreja. Combatemos juntos um inimigo comum há muito, muito tempo. Mas o senhor de Fontarcada vive num mundo que é só dele, um mundo que já passou, um capítulo longínquo da história em que o direito descia sobre os bravos e os pios, e tudo era ordenado e tudo se vergava à espada e à cruz… e cá está ele, nobilíssimo guerreiro, emprestando a sua força a ambas, ou à caricatura dessas ordens fundacionais da terra, a nobreza falida e a igreja vendida…
- Não blasfemes!
- Numa outra vida, eu e o Fontarcada combatemos juntos a opressão dos vencedores. Contra uma força que queria que tudo se conservasse segundo a ordem vigente, eu lutava por uma nova era de brilhantes amanhãs, e ele para que tudo voltasse às tardes de valor e névoa de outrora. Ambos perdemos para os pragmáticos.
Fontarcada recuperou finalmente o controlo da voz.
- A história não corre de feição para os idealistas, disseste-me na altura.
- Disse, e digo-o hoje também. Nenhum de nós sairá triunfante esta noite.
Nesse momento, as portadas da varanda do palacete abriram-se com estrondo. Davam acesso para o pátio onde o torreão se implantava, na orla do morro que se inclina para o rio. Atravessaram-no uma dezena de homens fardados, de capacete negro e bastão em riste. Dois deles forçaram a entrada no torreão, arrombando a entrada com violência. Tinham invadido as fileiras comunistas e preparavam-se para apresar o seu reduto e capturar os insurgentes. Quando Fontarcada, que assistia a tudo isto com surpresa, olhou para o pátio, reparou no semblante de uma mulher. Vestia casaco e saia azul escuros, justos, camisa de seda branca e um fio dourado com pendente ao peito. Uma mulher elegantíssima, pensou Fontarcada, no exacto momento em que ela se voltava e, descobrindo-o na sua posição rapace, desarmou-o com uma expressão severa, e era tanta a fúria e tão bela com que carregava o olhar que ele sentiu o telhado estremecer debaixo de si, ou algo a toldar-lhe o equilíbrio e a força. Com a mesma naturalidade com que ia percorrendo o pendente pelos dedos, a mulher voltou-se e deixou o pátio. No torreão a polícia debatia-se com os revoltosos. Já não estava ninguém no topo e pela porta do pátio começavam a sair os primeiros detidos. Eram jovens, muito jovens, ainda ontem imberbes. Traziam na cara uma desilusão que dava pena, como se naquela noite toda a salvação do mundo se tivesse perdido irremediavelmente, vencida a batalha por um futuro tão precocemente arredado.
Fontarcada permanecia quieto. Já não empunhava a lança de ferro. Bernardo foi o último a sair, levado por dois guardas que o agarravam pelos ombros. Uma tumescência rosa-sangue cobria-lhe o olho esquerdo, impedindo-o de o abrir. O braço direito pendia inerte junto ao corpo e enquanto marchava ia balouçando solto junto ao peito. Mesmo assim, naquele estado de derrota, conseguiu ainda dirigir um último olhar ao seu rival no telhado. Sorriu-lhe sem ter medo. Lá no alto, Fontarcada lembrou-se do que ele dissera minutos antes.
Agora, já só restava ele. No pátio, na torre, na cidade em redor, tudo estava em silêncio e a neblina da madrugada cobria tudo como um veneno letárgico. Temeu toda aquela mudez, que apenas conhecia das horas que se seguiam a uma grande derrota. Desceu pela caleira que dava para o pátio da torre, aterrou e sentiu-se desprotegido naquele palco de granito. Mas estava sozinho. Saiu pelo portão do palacete e dirigiu-se à Fonte das Taipas. Lavou a cara e os braços. Tinha de encontrar Frei Jacinto no Convento, perceber o que se passara ali, falar-lhe da entrada da guarda aos comandos daquela misteriosa mulher. Subiu a rua e percebeu que nada o acompanhava agora.
A igreja do convento estava vazia. As chamas fátuas das velas resistiam na sua sepultura de cera mas eram já mais sombra do que lume. O fulgor da talha dos altares era uma caricatura baça e remelenta. Tudo era afogado pela penumbra. Fontarcada atravessou a nave da igreja e saiu pela porta do claustro, onde o nevoeiro denso imperava já sobre todas as colunas e nichos. Voltou-se e descobriu luz na janela da Sacristia. Chegado à porta entreaberta da sala, viu toda a assembleia de frades reunida em torno de uma figura que se destacava da profusão de caras e gestos toscos que descreviam aflições pueris. A mulher falava para eles com a autoridade de uma abadessa. A sua voz era vítrea e acutilante, afastando qualquer centelha de distração que pudesse perpassar pela mente de quem a ouvia. Com o desapego de uma criança, ia enlaçando o seu pendente entre os dedos finos da mão direita, talhando com o verniz madrepérola as lâminas nuas da cruz, acariciando o dorso estirado de Cristo em voltas lânguidas entre o anelar e o indicador.
Pedro Leitão
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