Há Mais Folhas Para Além do Excel
“Quando morrer...
Haverá tecnologia para lá dos meus
sonhos.
Haverá arte e liberdade.
Quando morrer, depois de morrer
Por ti, o destino será subjugado à
verdade.
Quando morrer
Lembrar-se-ão do barulho que fiz.
Mas tu, que és o som da minha vida,
não sei do que te recordarás.
Quando eu morrer, e da minha carne
nascer uma árvore num jardim qualquer, lembra-te que nessa árvore
estão os pássaros, cujas plumas um dia me caíram do chapéu.
Quando os fores venerar, essas esfinges
ao meu orgulho, só aí, chora. Não chores por mim. Chora porque
a árvore que quero ser, mas não serei, nunca te abraçará.
Chora porque de tudo o que dei às letras, à música, à arte, à
vida!, tudo definhou no orgulho ferido de umas plumas tesas no chão,
no sepulcro de uma árvore qualquer.
Quão doce seria o teatro, o nosso
teatro, se o palanque fosse feito dessa árvore, e tu o
percorresses com os teus pés.
Quando eu morrer, não quero aquelas
tangas que fazem aos artistas. Não quero vinho do Porto regado na
minha campa. Quero, miúda, viver na eterna memória do dia em que
te vi. Quero ser, como sou, como fui, poeta, sonhador, parvo. Para
ti.
E, Amor meu, quando me apagar,
desculpa. Sei que não crês... Mas eu sei que não será a
última vez que te verei. Eu não acredito no inferno, não posso
acreditar na ausência de ti.
E agora, que escrevo eu emocionado,
parecendo um fraco, inseguro, te juro, te rogo com a mesma força
que me arde no sangue, que serei teu como os pássaros são das
árvores.”
Assinou a carta. Olhou em frente e
estava a chover. Mais uma daquelas tardes típicas de Lisboa em que
os cinzas dominam o céu e lá fora tudo parecia cansado.
Duarte era assistente júnior no
departamento de vendas da “Magazine Literária” e a redacção
estava vazia, apenas ele e o director de marketing. António de
Azevedo Teixeira era um sujeito banal, que queria muito ser um chefe
“porreiro”, tinha dois livros na sua secretária. Por baixo a
“Arte da Guerra” de Sun Tzu e por cima a “Arte do Negócio”
de Donald Trump. A revista estava a falir.
Duarte ia olhando lá para fora,
evitava olhar para a folha de cálculo que, apesar de incompleta,
já agoirava o futuro do seu emprego. Lá no gabinete via o chefe
em grandes passos numa videochamada com a administração, com
uma mão agarrava no cigarro, com outra no telefone. Num instante
ambos cruzaram olhares e, ao contrário do que era seu costume,
Duarte não pôs os olhos no chão, “Para quê?”, pensou
languidamente. Levantou-se, fechou o computador e desceu para a
recepção.
Desde há uns anos até esta data a
revista tinha vindo a definhar, a filosofia a alterar-se. Deixara de
ser uma revista de crítica e louvor, para tentar ser uma revista
para todos. Com o medo que havia do elitismo, começou a tentar criar
polémicas e intrigas, apostar num jornalismo agressivo e artigos de
opinião insultuosos. Duarte sempre achou tudo isso um disparate e
hoje, lá dentro do pc fechado, estava a folha de Excel que lhe dava
razão, num gráfico descendente que tinha uma estranha beleza,
especialmente agora que não se via. Como era horrível ter razão
num dia em que chovia.
Lá em baixo estavam a maior parte dos
escritores, jornalistas e estagiários. Cada um com seu chefe em seu
gabinete na sua conferência. Havia barulho, grunhidos de
indignação, olhos esbugalhados e gente com os colarinhos abertos
a querer respostas e com medo de perguntar. Lá fora continuava a
chover. “Duarte! Já se sabe alguma coisa?” Joana era a mais
nova estagiária da revista. Ela foi na sua direcção, com os
olhos brilhantes de quem ainda acreditava em tudo aquilo, os olhos
que sempre teve, mas agora pesados pelas olheiras das constantes
noitadas que fazia. Habitualmente tratava das publicações para as
redes sociais e do diálogo com os alheios que lá faziam as suas
intervenções, mas sonhava em publicar artigos sobre todos os livros
que lia. “Os números já sabes, são os mesmos, nem os
transcrevi”, disse Duarte enquanto ela se aproximava, “Mas o
Azevedo não tem boa cara... Acho que de hoje não passa”. Ela,
já quase em lágrimas, agarrou-se a ele. Foi só nesse momento
que Duarte acordou do cansaço que tinha, por um instante esqueceu
tudo aquilo, por um instante, dentro dos seus olhos demasiado pesados
para olharem a mulher que amava, tudo tinha feito sentido, o ano e
meio deitado ao lixo numa revista decadente a ver outros julgar arte
sem nunca terem sido artistas, as bocas dos colegas para “Não se
armar em músico”, o amor dela.
Joana nunca o tinha tocado no
escritório, com medo do falatório típico de quem vive a vida
muito superficialmente. Ela queria, e ia ser levada a sério.
Tinham-se conhecido ainda o Duarte não
arranjara este trabalho. Tinha procurado tudo depois da faculdade,
numa luta desesperada para encontrar algo que não fosse da sua área,
algo que fosse o que ele queria, mas o dinheiro era tramado. Um dia
voltou à faculdade para se relembrar das amizades e da felicidade,
daquela inocência. Nesse dia ele viu-a lá no bar. Joana tinha os
olhos grandes cor do breu e cabelo indomável. Era uma mulher de
armas, Duarte sempre o notara. Era a mulher com que ele sonhara.
Tão rápido quanto o abraçara,
largou-o, com ar comprometido e voltou ao tema “Devia ter escrito
mais sobre celebridades ou assim! Criar contendas, essas coisas, sei
lá!”, e assim, com a mesma velocidade com que acordara, voltou à
lânguida turbulência do seu ser, “Tenho uma coisa para te
dar.”, disse sem prestar atenção ao que o rodeava, “Escrevi para
ti. Para nós.”. “Não fales de coisas dessas aqui!”
sussurrou ela indignada, “Vá! Pára lá com isso! Toma, que
eu...”. Antes que pudesse continuar os restantes estavam todos a
olhar na sua direcção, atrás dele vinha Azevedo Teixeira suado,
com o casaco às costas agarrado por um dedo. O seu bigode estava
particularmente retorcido e o cabelo todo puxado para trás no meio
de uma amálgama de gel dava a sensação de se tratar de uma série
de espinhos muito longos que lhe pesavam a cabeça de modo a ter o
nariz sempre empinado.
“Conseguiram! Conseguiram finalmente
afundar esta merda! Estão satisfeitos?!” Foi recebido com o
silêncio sepulcral de quem ouve alguém falar do topo de um vão
de escada. “Em vez de andarem com segredinhos e boquinhas uns para
os outros, se me tivessem ouvido! Este mês foi o pior de sempre!”.
Azevedo Teixeira continuava a sua
dissertação em como a culpa era de todos menos ele, numa senda
para intimidar a populaça e tentar demonstrar que “se o chefe
porreiro se chateia é grave”, uma táctica que, como Duarte
pensava, certamente teria aprendido em alguma da sua vasta literatura
de escritório.
Enquanto este prosseguia, Duarte olhou
em volta, estava rodeado de gente que, apesar de orgulhosa, nunca se
tinha imposto, sempre alinhavam com as ideias mercantilistas de quem
não fez da escrita vida. Duarte era de vendas, o trabalho dele era
vender aquela revista, mas a verdade é que a revista já estava a
fazer tudo por tudo para se vender. Os olhos da pequena multidão
estavam postos naquelas escadas, os sonhos e as esperanças também.
Toda aquela teoria e a verdade era tão mais simples. Lá fora a
chuva fazia-se ouvir cada vez mais.
“Estás a olhar p'á onde?!”
Agora dirigia-se para Duarte, “Tu também tens culpa no cartório,
não só estes escritores e jornalistas frustrados!” Tinha intenções de continuar, mas Duarte, que se voltara para ele,
virou-lhe costas. Teixeira preparava-se para repreender a insolência
do seu subordinado, enquanto Joana, que nunca tinha visto tal atitude, lhe perguntou, “Que tens?”. De repente, Duarte voltou a estar leve.
Sorriu, um sorriso de orelha a orelha passou-lhe um papel dobrado em
três para a mão e virou-se para a pequena multidão.
“Ele não está completamente
errado sabem?” Disse numa voz, que apesar de baixa ressoou das
escadas até à porta. Teixeira, agora branco, silenciava-se de
repente. “A culpa é nossa, dele também. Mudámos todos os
valores aqui, todos os que sonhavam ser cultura e arte tornaram-se
propagadores de escândalos em nome de vendas!”. O silêncio que
o auditório lhe dava agora era estranho, nunca se tinham calado
para o ouvirem, só neste momento, à beira do precipício. “Claro, as pessoas que gostavam de nos ler desertaram-nos, os que não
gostavam, não mudaram magicamente de ideias. E tudo porque nenhum
de nós, artistas frustradíssimos, disse não aos seus chefinhos.
E eu é que sou de vendas.” A chuva agora batia nas portadas de
vidro de tal forma, que a cidade inteira parecia chorar. A dona
Fátima da recepção soluçava, estava naquela empresa há 30
anos, já estava à espera do terceiro neto e agora tudo era
incerto. “Lá fora faz hoje mais barulho que alguma vez se fez
nesta redacção! Escutai, escritores! Jornalistas! Escutai que é o
som do cansaço de quem não teve a grandeza de dizer 'Não!'"
Todos começaram num grande alvoroço,
gritos e impropérios “Muito bem!” Ou “Lá vem este...” mas
Duarte não ouviu nada, virou-se para Teixeira que mudava de cor
mais rápido que um polvo e disse, “Caríssimo Dr. Teixeira, com
a sua permissão, vou-me retirar, sei que terão a coragem de
resolver as coisas, e se alguém tem que sair, prefiro que seja eu.”
Antes que ouvisse uma resposta, desceu as escadas e saiu para a porta
onde a chuva o abraçava como a um soldado numa trincheira.
“És mesmo demasiado orgulhoso!”
Joana tinha-o seguido, também ela com o seu longo cabelo a ficar
encharcado, e a chuva a mascarar-lhe as lágrimas. “Então e as
aparências?” Perguntou ele inocentemente, como se tivesse
esquecido dos cinco minutos anteriores. “Pára com isso! E que é
este papel? Ias demitir-te hoje?! Não pensaste em dizer nada?
Também me vais deixar por carta?! Que é isto, seu estúpido?!”. Se
não fosse a água que caía os seus gritos teriam sido ouvidos
pela avenida fora.
Duarte aproximou-se dela, deu-lhe um
beijo e disse “Isso é eu a dizer, 'Não'". Com voz suave
prosseguiu, “Sabias que as cinzas destes dias condizem com os teus
olhos? Como é que deixava isso? Não, obrigado.” Ela agora sem
saber como reagir agarra-se a ele, “És mesmo parvo! Mas sabes dar
show quando queres! Ai Duarte”.
“Amor, ouve a chuva, ela se chora é
por ti, é pelo que não queres fazer! Tu e todos naquela revista,
até eu, mas tu mais que todos. Joana, tu que és o meu despertar
para o mundo, tu tens que saber isso, certo? Não desistas miúda
e, se é para aquilo cair, que seja de pé.”
A chuva continuou, mas eles foram-se
embora, Joana voltou para dentro de peito cheio para mudar o mundo de
pluma na mão. Duarte foi para o jardim.
Tirou a gravata, pôs-se em cima de um
banco, atou-a num nó cego, e depois umas voltas no pescoço. Estava
tudo pronto. Saltou e o ramo partiu atirando água para cima dele. No
chão Duarte estava vivo, ri, “Parece que 'Não!', que
imbecil.”
“Amanhã será um novo dia, talvez
menos cansativo”, pensou olhando para a azinheira de onde tinha
caído, e pôs-se à sombra a escrever. Os pássaros chilreavam,
pode ser porque a chuva tivesse parado ou, só talvez, por, desta
vez, terem uma razão para cantar.
Zé Bernardo da Fonseca
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