O amor é um ciclo

Vivíamos um para o outro, parecia que tínhamos estado sempre ali. Como se não existisse um antes e não viesse um depois. Tudo começou quando éramos jovens. Talvez tenha sido precoce mas estava calor e deixámo-nos ir. O sol raiava sobre nós, foi como se evaporássemos. Flutuámos, como se voássemos a caminho do céu. À medida que a terra ficava mais longe dos nossos pés, mais próximos estávamos. Foi como se nos fundíssemos. Conhecemos outros casais, mas nenhum como nós. Volta e meia desentendiam-se, arreliavam-se e acabavam por se separar. Como se interrompessem a suspensão que só o amor provoca. Eram autênticas tempestades, que ultrapassavam o volume aceitável de um copo de água.

Nós fomos aguentando, mas os casais mais maduros tinham razão. Nada dura para sempre, todos os casais discutem. Às vezes, mesmo que não queiramos ou mesmo que seja temporariamente, temos de voltar à terra. O ambiente entre nós estava cada vez mais pesado, cada vez mais cinzento. A pressão começou a aumentar, como se carregássemos um peso insuportável. E carregávamos. A memória já me falha, mas lembro-me dos gritos, pareciam trovões. Quando dou por mim, não o vejo. Estou em queda livre. A terra fica progressivamente mais perto. A descida é alucinante. O choque foi inesquecível. Como se cada molécula que há em mim se tivesse estilhaçado.

Depois do embate perdi a consciência. Caí junto a um rio. Quando recuperei os sentidos tentei erguer-me, mas estava desfeita. “Viva! Estás bem, querida? Que disparate não me apresentar, sou o Orvalho.” Que gabarolas, pensei. “Estou atordoada.” Piscou-me o olho, lançou-me a mão e tentou aproximar-se de mim. Invasivo. “É um ciclo, fofinha. A primeira custa mais, mas vai voltar a acontecer e vais habituar-te. Chover no molhado é mais giro do que parece.” Riu-se imenso. Achei o sujeito estranhíssimo, não estava a perceber nada daquilo. Que nome era aquele, “Orvalho”? “Miúda, choveste, percebes? Eras parte de uma nuvem e choveste. Aliás, granizaste. Por isso é que estás toda partida. Chover custa menos, não te preocupes.” A minha vida nunca mais foi a mesma. As palavras do Orvalho ecoavam na minha cabeça. “Vai voltar a acontecer… é um ciclo." O plano que o Universo tinha para mim era fazer-me flutuar, subir na vida e logo a seguir atirar-me para o chão? Vezes e vezes sem conta? O sol nunca mais brilhou da mesma maneira para mim.

O Orvalho perseguiu-me todos os dias durante o tempo em que estive junto ao rio. Foi terrível. Além de ser gabarolas, vim a descobrir que antes de chover, ele evaporou do buço de um humano. Nojento. Eu e o Pingo evaporámos do Mar Báltico. Mas por quem é que esta amostra de suor hominídeo me toma? Não bastasse esta sua origem, de cada vez que tentou seduzir outras gotículas no rio, foi engolido e libertado sob forma de excreção pelos peixes mais impuros que ali passavam. Se isto não é uma combinação vencedora das piores fragâncias do planeta, não sei. Daquele plebeu, só queria distância.

Rezei todas as noites para a terra me absorver. Finalmente, as preces foram ouvidas. Renasci em flor, fingindo ser outra. Tive algum descanso até que o Orvalho reparou em mim. Rezei todas as noites que o Orvalho fosse absorvido pela terra. Era tudo tão mais simples se ele se afogasse num lençol freático e nunca mais visse a luz do dia. O Universo parecia estar contra mim, mas não desisti. Rezei todos os dias para o sol me evaporar de novo. A espera foi longa, mas finalmente as preces foram ouvidas.

O sol raiou sobre mim enquanto deslizava no escorrega improvisado – a folha curva mais carnuda de Maria, a flor. O calor lembrou-me o dia em que o mundo se tornou nosso, meu e do Pingo. Raiou da mesma forma, mas o Pingo não estava. Senti-me a flutuar de novo, mas não da mesma maneira. A Maria sorriu e despediu-se, agitando as suas pétalas. O Orvalho gritou: “Continuo aqui e não me esqueço de ti, vais voltar para choveres aqui no molhado, fofa!”. Largou uma gargalhada pervertida. Achei o comentário muito indelicado. Aquela tentativa de piada foi tão seca que quase interrompia o ciclo da água no nosso planeta. Enfim, acenei-lhes graciosamente.

A viagem até lá cima não é tão agradável quando é feita sozinha. Não resisti aos nervos e à pressão da altitude e perdi os sentidos. Quando acordei, horas depois deste processo fisicamente tão desgastante, tinha uma mão entrelaçada na minha.

Eu e o Pingo somos nuvem outra vez. Estão a perguntar-se o que acontece se um dia chovermos de novo? O ciclo da água é infinito*. Voltaremos sempre a evaporar e condessaremos sempre juntos porque tal como o ciclo da água, o ciclo do amor também é infinito.

Mariana Godet

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* O sol fornece luz e calor ao nosso planeta. Essa energia promove o aquecimento e é assim que se dá a evaporação de parte da água da superfície de rios, oceanos, folhagens e corpos de humanos e animais. O ar húmido é menos denso que o ar seco, por isso sobe. As moléculas de água são carregadas pelos ventos cada vez mais alto e mais longe. Em altitude, aglutinam-se, formando gotículas de água que se agrupam e formam nuvens. 

Eventualmente, as gotas tornam-se pesadas demais para se sustentarem na atmosfera e caem. Dependendo das condições do tempo, podem cair como pedras de gelo (granizo), como cristais (neve) ou como gotas (chuva). 

Ao atingir um solo permeável, parte da agua que se infiltra é absorvida pelas raízes das plantas, outra infiltra-se por camadas mais profundas do solo, chegando a lençóis freáticos. Este ciclo repete-se indefinidamente, alimentado pela energia do sol.

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