O Sol Omisso
Teria inspirado todo o ar do mundo se a ele tivesse acesso. Provavelmente o meu corpo não aguentaria a pressão, e a fragilidade, ou inexistência da minha massa muscular cederia à minha própria ambição de querer ser um melhor eu (e assim, aos olhos desatentos de todo o mundo, simplesmente e inexplicavelmente explodiria). De facto, foi esse o factor que me conduziu à situação que agora vivia, e não podendo fazer mais nada neste momento a não ser lidar com tal, saboreei o oxigénio que me circulava pelo sangue, e decidido, expirei suavemente no ritmo com que abria os olhos.
FODA-SE! O mundo está de pernas para o ar! Não passaram mais de cinco segundos desde que pestanejei, e posso jurar-vos a pés juntos – haviam-me instruído que era este o costume correcto - que antes de semicerrar os olhos, o mundo estava exactamente igual a todos os outros dias e noites. Mas agora, o chão era o tecto, o tecto era o chão, e a imensa avenida que posso avistar lá fora estava no céu, enquanto que as nuvens cinzentas que me fizeram levar um guarda chuva para aquele local - não querendo arriscar apanhar uma grande molha e ficar doente - apresentavam-se como o caminho que iria ter de percorrer para voltar para casa. Os carros circulavam lá no céu, apressados como sempre àquela hora da manhã – lembrei-me agora: será que ainda existem manhãs, visto o Sol agora jazer no chão, ou será que são as luzes indicadoras daquele semáforo velho que vejo lá em cima, que marcam as várias fases do dia? -, e não fosse o facto de tudo estar invertido, tudo parece igual. Pessoas nas suas rotinas matinais, pessoas por quem passo todos os dias enquanto me dirijo para o trabalho, e que por quem hoje passaria novamente, não fosse a folga que me foi dada. Olhem, se não estou em erro vem ali a velha dos cães. Sempre que passa por mim, eles começam a ladrar-me e ela sempre me diz com voz de quem quer ficar a conversar, “Não se preocupe menino, eles não mordem”. Já estou tão acostumado que já lhe sorrio mesmo antes de ela me dizer seja o que for, mas a Lulu e o Regueifa – uma rafeira e um dachshund respectivamente – claramente ainda não se acostumaram a mim e continuam a ladrar-me dia após dia. Ou talvez seja exactamente o oposto, e só estejam a fazer-me o que eu faço à sua dona, vítimas também eles dos cânones da rotina. Mas hoje não passariam por mim, pois encontrava-me do lado de dentro e eles não me conseguiriam ver. Não obstante, eu estava a vê-los a eles, e apesar de estarem a andar de pernas patas para o ar, pude constatar que mantinham a atitude, e afinal não era nada comigo, só ladravam a quem quer que por eles passasse. Desta vez era a um senhor careca que se cruzava com eles bem à minha frente. Não sei quem ele seja. Possivelmente os horários dele permitem-lhe fazer aquele percurso mais tarde, e como vem atrás de mim, nunca me cruzo com ele. Ou então foi só um mero fruto do acaso que o colocou aqui, para me provar que não sou especial, pelo menos para aqueles dois cães. Para a Senhora Alice devo ser, pois ela não lhe soltou um “Não se preocupe menino, eles não mordem”, só se limitou a segurar a trela mais firmemente para o senhor passar, e após isso seguiu viagem até sair do meu campo de visão.
Estes pensamentos
fizeram-me abstrair da nova realidade que estou a viver, e que o meu
corpo já começa a apresentar os primeiros sintomas de agora estar a
lutar contra a gravidade. Neste novo mundo, eu tinha permanecido
igual, e continuava cá em baixo, ao contrário do resto das pessoas
que agora viviam lá acima. Abateu-se em mim uma estranha sensação
de solidão, estou só. A minha mãe sempre me tinha alertado para
não recorrer a estes sítios, que devia ir para um qualquer jardim
ou parque, ou até mesmo para a rua, como qualquer outro rapaz
saudável da minha idade, mas foi exactamente para não me sentir
deslocado que vim parar aqui, onde todos vêm para o mesmo, e acabei
por ficar só na mesma. Nesta altura uma lágrima começa a
fabricar-se no meu olho, e começa a escorrer-me a cara em direcção
ao escalpe. Ao mesmo tempo, lá fora, a chuva começa a brotar das
nuvens e a ascender até ao asfalto, e encontrarão, muito mais
rapidamente que eu, alguém em quem tocar. Funny enough, mal
as sentem, as pessoas desatam a fugir em busca de um abrigo.
Geralmente procuram algo onde se possam colocar por baixo, mas agora
tudo o que via era pessoas a procurarem algo onde se pudessem colocar
em cima. As bem-sucedidas desaparecem-me do olhar, mas pelo ar da
coisa, são poucas as que o estão a conseguir. Olha, ali vêm a
correr a Alice e o Tomás. A Alice é uma rapariga que passa por mim
todos os dias. Pela minha cronologia hoje está atrasada, e corre não
pela chuva – graças a deus, os romanos já referiam a chuva como
chuva, ou pluva em latim, e portanto não perco tempo a
inquirir-me se a chuva continua a sê-lo quando vem do chão e não
do céu - mas pelo que ainda tem de fazer. Do que a conheço, não se
deixaria melindrar por meras gotas de água. De mão dada ao Tomás,
o seu filho, corriam contra o tempo, em direcção à creche do
rapaz, onde o deixaria para de seguida ir a correr para o trabalho. É
estranho, apercebi-me agora que me cruzo com eles faz três anos, e
nunca em nenhum momento lhe perguntei em que trabalhava. Sabia outros
pormenores da vida dela, de onde era, onde morava, o seu estado de
saúde, e até que iria ser mãe novamente e não o conseguia ainda
admitir ao resto da família, mas nunca lhe tinha perguntado o que
ela era. Eventualmente pegou no Tomás ao colo, e continuou a sua
correria, deixando-me para trás, nos meus pensamentos, focado em não
me esquecer de corrigir esse lapso da nossa relação.
Tudo
isto faz-me subir, ou descer – já não sei nada – o sangue à
cabeça, e enraiveço-me sem saber bem o porquê. Talvez seja o
volume anormal de sangue na cabeça. Supostamente, estar ali deveria
ser algo bom para mim, que me deixasse bem a longo termo, mas logo na
primeira experiência encontrava-me a ser e a viver algo que não
conseguia reconhecer ou querer. BASTA! Mandei o PT para o caralho, e
parei de fazer o pino. Vou mas é para casa comer uma fatia de salame
e ler algo que que me faça ser mais pretensioso do que realmente
sou. Saí do ginásio, parou de chover e o Sol tinha regressado ao
céu.
João Rocha
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