A_rumar


O ar circulava frio na rua, apesar de ser verão e haver sol. Tinha acabado de chegar e ainda estava com algum sono da viagem de comboio. Olhava agora em redor. Do outro lado da rua, na praça central, avistava um painel colorido com um letreiro a branco, mas estava demasiado longe para conseguir ler.

Existe uma canção chamada Elogio da Pobreza, com uma letra fabulosa da multifacetada Regina Guimarães. Faz parte do álbum (muito) Animal do projeto musical Osso Vaidoso, uma colaboração da voz de Ana Deus com os bons sons de Alexandre Soares. Essa música ecoava de vez em quando na cabeça de Francis, particularmente em dias mais desgastantes, de grandes cargas (de água e não só), de chuvas dissolventes e pés nas poças, que tanto refletiam o seu desconforto. Dias de reflexão. Lembrava-se da primeira vez que a tinha ouvido. No seu primeiro ano de faculdade, tinha ganho esse CD animalesco ao participar num passatempo da revista Mundo Universitário. O CD estava agora no sótão da casa dos pais, na companhia de outros discos e de outros tantos objetos em desuso. A canção, revisitava-a no Spotify, embora soubesse a letra e melodia de cor.

Acabado o curso, Francis tinha os grandes desafios da vida profissional e do mercado de trabalho para enfrentar. Na bagagem levava já alguns empregos precários, estágios, experiências profissionais e colaborações, recibos verdes e biscates, mas ainda não tinha atingido a estabilidade e autonomia que queria. Pelo menos não aquela que se lembrava de ter traçado em criança, na lista de planos e metas. Do tempo dos sonhos, recordava como era maravilhosa a sensação de andar nas nuvens. Depois aprendeu que as nuvens são vapor, sem garantia de firmeza e muito menos de segurança aos pés que lá pousam. Conheceu o pânico das quedas e apenas não soube melhor a dor do impacto pelo feliz acaso de ter a boa rede da família e dos amigos. Mas mesmo com essa segura rede, o que desejava era uma grande malha. Era isso que tinha em vista, mas que parecia não ter futuro próximo.

Estava na altura da habitual arrumação anual. De volta ao sótão, onde estavam guardados todos os materiais que usou ao longo do curso, o desafio imediato era arrumar e organizar toda a “tralha”. Contudo, era uma tarefa muito mais longa que a curto prazo. Como era possível ter acumulado tanta coisa desnecessária? – questionava-se enquanto contemplava molhos e molhos de papéis e ironizava secamente como era literal a sensação de se dizer “full of shit”. Era “acumula-tralhas”, remetendo para o termo tão bem criado e debatido num episódio de Mixórdia de Temáticas.

Encontrou um dossier com textos da disciplina de estética, sobre o apego e desapego. "Finalmente, uma aplicação prática para esta filosofia" – pensou. Na presença de tanta coisa, contudo, na ausência de grandes objetivos e expectativas. Tinha projeções para o futuro, mas faltavam-lhe as bases estáveis para construir. As apostas falhavam, as escolhas também e o medo de não corresponder era um recorrente bloqueio. E lá estava, a arrumar o sótão, por entre papéis, maquetes de projetos antigos, fotocópias, livros, discos e montanhas de materiais "que podem dar jeito, um dia". Neste cenário, ficava com a sensação de que havia coisas que o ocupavam e outras que só ocupavam. A limpeza iria satisfazer o desejo de ter ocupações, e não coisas que apenas ocupassem – ou talvez essa fosse também só mais uma expectativa a falhar. "Este vai para a estante dos livros;... isto lixo;...lixo;...reciclagem de papel;... que raio é isto?!" E eish… um achado! O projeto de grupo que tinha feito com o maluco do João, a Catarina de Beja e os Erasmus: a escocesa Kirstin e o James de Liverpool.

A K era de Paisley, mas estava a estudar numa universidade em Glasgow. Adorava o movimento da cidade e a abertura às artes e cultura. Da sua terra natal, era sobretudo fã do músico Paolo Nutini. Francis lembrava-se vagamente de uma música dele, Candy, que às vezes passava na VH1, mas toda a restante discografia era uma surpresa. Na altura, a Kirstin passou-lhe uns ficheiros MP3 com as músicas do álbum Sunny Side Up (2009). Uma das faixas era Pencil Full of Lead, uma canção engraçada e, mais que isso, uma canção de "dar graças". No Youtube estava uma versão ao vivo que apreciava mais, não tão groovy quanto a original do disco. Percebia-se melhor a letra, sem perder a "boa vibe" do ritmo e a intensidade da voz. Era música para animar - que bom recordar isso. "Isto vai para a estante"... Esse projeto tinha corrido bem. Valeram a pena as horas investidas e valeu também pela troca de ideias e pelos laços de amizade. Na promessa tinha ficado um "come to Glasgow" da K e um "hope to see you in Liverpool" do James. Estava na bucket list, mas Francis sabia-o: o maior problema das listas são os tópicos que vão ficando sempre para trás – ou, tal como tantos projetos, na prateleira. 

Por onde andariam esses ficheiros MP3? Numa pen, talvez...ou no disco externo, ou nalgum CD de dados. Possivelmente estariam no canto mais arrumado do sótão: a caixa dos discos. Lá o encontrou, mas também outro,...

…Osso Vaidoso. Abriu a caixa, retirou o CD e pôs play. Primeiro ouvem-se as cordas da guitarra; depois as vocais. Escutou a letra: completa, íntegra e inteira, construída de pedaços e de tudo o que não temos de completo. Uma letra em jeito de lista das coisas que não possuímos e gradualmente caminhando para a simplicidade de elementos que são nossos por natureza. No interior da capa do disco aparece a indicação: "a partir de Ain't Got No/I Got Life". “Um Clássico”, imaginou na voz de contentamento do seu pai (antes dessa música de Nina Simone, Francis ouvira Sinnerman, mas apenas se lembrava dela por associação ao programa da TV Sociedade Civil). Só após a fase de adolescente é que soube apreciar um pouco melhor o sentido e a carga da canção. Sentia-se alguma angústia no ritmo, também ele marcado por um compasso de anotações daquilo que não há. Para aliviar, mudando a faixa e a cantiga, I got Life. Para nos lembrar das simples coisas e da nossa ação. Sobretudo isso: de pouco ter, mas ter o gesto de fazer. Ter a maneira de ser e dar o que somos.

A música parou. A primeira faixa de Animal tinha chegado ao fim. Francis tirou o CD e guardou-o com cuidado na caixa. O elogio da pobreza acontece porque a de espírito não está em falta. De tudo aquilo que não tem e não lhe pertence, há algo que pertence a ser: é ser. E isso é algo que é feito, e feito da mesma fibra das redes que se costuram, que nos fazem saltar. Os saltos são amplitudes de visão, alcances aéreos em trampolim (às vezes com medalhas e esforços igualmente olímpicos), sem esquecer a primária diversão dos saltos ao eixo (que, na base da confiança, são aqueles em que se aprende a dar o corpo e as costas para proteger as dos amigos, e se incentiva a pular mesmo que os joelhos acabem um pouco esfolados). João Pedro Pais cantara com razão que Ninguém é de Ninguém, para não esquecer a liberdade de sermos indivíduos com particularidades próprias; Francis pensava ainda mais na frase “ninguém é uma ilha”, numa música de grande significado (sobre andar à deriva) que conheceu graças à irmã – de uma das suas bandas favoritas: Travis.

Deu a volta ao sótão. Deitou muita coisa fora. Decidiu ceder e emprestar alguns materiais de estudo ao fórum da AE, para disponibilizar pelas unidades do curso. Duas sacas com papéis foram para a reciclagem; colocou os livros nas estantes e alguns discos ficaram numa prateleira mais a jeito. Ligou ao João para agendar um café nessa semana e escreveu à Catarina a perguntar se estava em Beja na altura do Festival de Banda Desenhada (afinal, não era assim tão longe e nunca tinha visitado a cidade).

Apertou o casaco e seguiu na direção da praça central. Voltar a ver amigos é bom. Tinha sido ótimo estar com o James e conhecer a cidade dele. Aproximou-se do painel e, desta vez, conseguiu ler com clareza: "People make Glasgow".  

(Consultar as letras das canções: Elogio da Pobreza, de Osso Vaidoso; Pencil full of Lead, de Paolo Nutini; Ain't Got No/I Got Life, de Nina Simone).

Joana Geraldes (texto e ilustração)

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