Sai um texto mal passado

Posso escrever sobre bolachas de manteiga numa lata azul-escura-brilhante, sobre um fio de ouro ensanguentado no chão do colégio, sobre um dealer chorão e aqueles 4 centímetros que cresci fora de tempo e quero descobrir onde. 

Peçam-me para divagar em 5000 carateres sobre amigas de longa data ou sobre quando tranquei a turma na sala da catequese porque pensava que a hóstia era chocolate branco. Até me pinto para esgotar as palavras. 

Mas nunca sobre sentimentos. 

Não pensem que não tentei. Mas é que soa sempre a cru. Àqueles bifes em sangue por dentro (​sai um texto mal passado para a dois), a forte e destemido, a corajoso, a um sentimento como ele se vê se fora, a uma mão que pega na pistola com firmeza mas por dentro treme mais do que as ilhas da Indonésia. As maravilhas do backstage das palavras são infinitas e esta é uma delas: ser fechado ao público e parecer aberto. (Ai, que escritor emocional. Ai, que poeta apaixonado, Vocês sabem lá, faz-vos gastar os lenços pela mulher que nunca teve porque era de homens que gostava e vocês a chorar a história de amor - nula - falsa - falhada.) 

(Quando cheguei à capital, pensava que as pipocas das estações de metro eram grátis. Há maneiras mais profundas de escrever sobre ​Ingenuidade, mas esta é a minha.) 

Um dia li que do sofrimento nasce a inspiração. Será parto natural ou cesariana? Eu realmente leio muitas balelas. Que Luís de Camões se inspirou na morte da Dinamene e Goethe chorava Lotte enquanto se pintava de Werther à tinta da caneta e do sangue e das lágrimas. Merdas. Não se escreve o sentimento sentido. Papel molhado não aceita tinta. (O poeta é um sofredor - mentira!, era fingidor e já me passava). 

(Feito! 45 minutos de entrevista com o Presidente da Associação X! O trabalho era importante e eu era estagiária. Já viste bem, oh editora-chefa? Consegui! Chegar a casa e ver que não gravou. Toma lá e embrulha, para não te armares aos cucos. Existem melhores formas de escrever sobre​ Desespero ​- mas o quarto em silêncio, a folha branca e a memória a ser puxada a ferros é a minha. Nunca ninguém soube e a peça foi um sucesso. Mas também não sei escrever sobre ​Alívio.)

Quando era pequena e fazia algum disparate, os meus pais mandavam-me para o quarto “pensar na minha vida”. Mas que raio de espécie de castigo é este? Se calhar está aí a raiz desta erva daninha que é a metafísica precoce! Mais valia terem-me tirado o Tamagotchi. Retiro o que disse. Não culpem os vossos pais por serem otários. Nem os signos. 

(Um fato de treino cinzento novinho em folha. Tamanho de 4 anos, mas eu já tinha 5 - para não ficar comprido nas mangas. Dia de trabalhos manuais na sala do jardim de infância. O tema era a primavera e as folhas brancas estavam estendidas, as tintas todas misturadas e sem pincéis naquele dia: o desafio era pintar com as mãos. Uma vontade de fazer xixi que crescia, mas o ímpeto criativo não devia ser interrompido! No final, a corrida aflita até à casa-de-banho. As mãos a parecerem uma bandeira LGBT. As calças perfeitamente cinzentas, eram bom pano mas eu não lhes queria pôr a nódoa. Olho para o lavatório, olho para a sanita. Uma escolha muito difícil para uma mente de 5 anos. Olho para as mãos, olho para as calças. Abro a torneira. Amarelo, laranja, vermelho, verde, azul, as tintas a diluírem-se e o som da água, no lavatório e logo nas minhas pernas. Há melhores formas de escrever sobre ​Vergonha. O resto daquela tarde é a minha.)

Ouço os textos sentidos que me lêem e admiro os sextos sentidos de quem os escreve. Tiro o chapéu que não tenho - compro um de propósito para tirar - a quem se consegue abrir assim, ali numa espargata completa a mostrar o sentimento todo esticadinho e nítido. Tantos escritores emergentes e eu aqui, negligente. 

(E o sangue a subir-me à cara, o buraco na porta de madeira do quarto que não é meu, o hematoma na mão que é minha. A ​Raiva não se escreve. Passeia-se, distrai-se, até que chega a hora da sesta - como uma criança com birra. Anda, vamos à rua. Ah, que lindo, olha ali o cãozinho, Não chores, olha um menino tão bonito a fazer uma cara tão feia. E ela adormece e fica ali, até se lembrar.) 

Há capacidades que se vão ganhando com os anos. Tocar um instrumento ou praticar uma modalidade. Tirar primeiras impressões credíveis, ser paciente, parecer paciente, sorrir maternalmente enquanto se manda à merda. E depois há aquelas que se vão perdendo: dentes de leite, tempo livre, talento para escrever sobre sentimentos. 

(O riso do meu pai quando lhe pergunto a receita daquele pitéu,”Oh, isso é fácil!”. E depois desbaratina em quarenta dicas para o polvo não encolher e o arroz ficar soltinho. Há melhores formas de escrever sobre​ Amor, eu sei. Mas esta é a minha.) 

Se lerem o meu diário de quando tinha 12 anos, percebem que a escrita emocional não era um território desconhecido - era o que eu mais fazia, aliás, a par de jogar Minijuegos e de não estudar Francês. Era uma salada russa de amores e desamores, uma mistela entre pseudo-ódio - que variava de alvo entre a professora de físico-química e a lambisgóia que se fazia ao miúdo giro do nono ano - e revolta imensa por me passarem à frente na fila do almoço. Testamentos sentimentais em formato XXL. Depois, esse talento foi-se transformando em terra infértil, secando, ficando cada vez mais árido - até desaparecer de todo, às mãos de crónicas e humor autodepreciativo. 

(A flauta pousada ali à frente, entre as nossas mesas juntas. Peguei e soprei, longe de adivinhar que era a da Joana e não a minha, que ainda estava na mala. Malditas flautas de bisel todas iguais e malditos os seus estojos de plástico verdes-cor-de-vidrão. Porcaria dos instrumentos e porcaria das aulas de música. Raios partam a minha infeliz ideia e a minha inteligência saloia. “A Sónia acabou de soprar na flauta alheia!”. As palavras do professor galhofeiro, a rir com a boca e com a barriga e com o corpo todo. E a turma com cara de nojo, ouviram-se 26 “ewwwws” incluindo o da Joana. Eu não sei escrever sobre Humilhação ​nem quero, não admito precisar desde esse dia no sexto ano.) 

Tristeza. Frustração. Ciúme. Medo. Calma. Fracasso. Indiferença. Compaixão. Injustiça. Culpa. Humilhação. Ansiedade. Escrevem-se assim em português, se não houver alguma gralha aí pelo meio. São só alguns dos sujeitos para os quais não arranjo predicado. 

(Estava presa no trânsito. no Túnel do Campo Pequeno. Encarcerada na procissão mais mecânica, poluente e barulhenta, sem luz ao fundo do túnel. Liguei a uma multitasker, que trabalha com crianças em horário laboral, é costureira prendada nos momentos livres e minha mãe a tempo inteiro. Nesse momento, estava a contar uma história àqueles que têm a sorte de poder estar com ela todos os dias. E ali fiquei, com a chamada em altifalante, eu e os carros do lado a ouvir a história do Dragão Pintas que roubou os ovos da aldeia. Há outras formas de escrever sobre​ Carinho. A minha é a rapidez com que a hora seguinte passou e o sorriso de todos ali, especialmente o meu.) 

Será que com figuras de estilo fica mais simples? Vamos lá ver. ​Comparação​: a Indiferença é como passar a nossa consciência para aquele braço direito que está dormente de manhã, tão estranho que nem parece nosso. ​Metáfora: ​o​ ​Ciúme é azia sentimental, uma espécie de ácido corrosivo das emoções. ​Personificação​: o Medo tem asma, Parkinson, arritmias e é hipocondríaco. ​Redundância​: a ​ Tristeza é mesmo triste.​ I​ronia: terminar este texto não me está a causar Ansiedade. 

(A caixa azul já nem existe e as bolachas de manteiga nunca mais vão saber ao mesmo. E se isto não é a melhor forma de escrever Saudade.)

Sónia Costa

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