Tocou-lhe o telemóvel

Tocou-lhe o telemóvel. Não mais que duas, não menos que quatro vezes. E, quase sem atender, perguntaram-lhe onde estava. Perguntaram-lhe se tinha almoçado, e o que tinha almoçado, e porquê. Perguntaram-lhe se tinha frio, se estava vestido de forma preparada para a chuva. Perguntaram-lhe com quem estava, e se eles tinham almoçado e estavam preparados para a chuva. Perguntaram-lhe quando voltava, se ía outra vez, o que fazia amanhã e se estava pronto para o amanhã, se mais, se menos do que tinha ontem estado pronto para hoje, e como estava a correr, hoje? Perguntaram-lhe se tinha apagado o esquentador, verificado se todas as torneiras estavam fechadas, tomado a vitamina e tirado tempo para reflectir acerca dos benefícios de cada um dos 26 componentes da mesma. Perguntaram-lhe qual o padrão da camisa, qual o tipo de tecido dos calções que envergava, qual a cor do céu quando para ele não se olha. Perguntaram-lhe o que andava a ler, os filmes que planeava visionar, quais as flores que cresciam na varanda da frente da vizinha de baixo. Perguntaram-lhe sobre as suas aspirações profissionais, se isso dava dinheiro e se tencionava casar. Perguntaram-lhe do que é que gostava numa moça e do que é que as moças gostavam nele, e se elas eram todas iguais, e se ele era igual a alguém que não o pai. Perguntaram-lhe qual o tom das meias de domingo, o nome de solteira da senhora da caixa do supermercado, qual a carta que faltava no baralho inutilizado do campo de férias onde passavam férias os sobrinhos do Manuel. Perguntaram-lhe qual o ponto certo do doce de marmelo, o número de telhas necessárias para cultivar um navio e se já tinha passeado o cachorro hoje. Perguntaram-lhe acerca do regime alimentar das vacas açorianas e o modo como isso se relacionava com o estado actual da bolsa de valores; por acaso ele sabia qual era? Perguntaram-lhe qual foi a última vez que foi ao jardim zoológico, se levava pão para casa ou se preferia cear leite ou iogurte com cereais, e que nome daria ao bichinho-da-seda mais hiperactivo de uma qualquer caixa de sapatos. Perguntaram-lhe isto e poucas outras coisas. Perguntaram-lhe isto, ele não respondeu: desligou a chamada e foi-se embora. Vinte anos depois, quando regressou, regressou ele mesmo, sem nuvens à sua volta, sem sombras dentro de si. Vinte anos depois, regressou com seis livros, quatro filhos e nenhum arrependimento. Quarenta anos depois, partiu longe de considerações, pensamentos e vidas alheias - afinal de contas, só levamos para a cova aquilo que fomos.

Dani Gonçalves

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