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Tocou-lhe o telemóvel

Tocou-lhe o telemóvel. Não mais que duas, não menos que quatro vezes. E, quase sem atender, perguntaram-lhe onde estava. Perguntaram-lhe se tinha almoçado, e o que tinha almoçado, e porquê. Perguntaram-lhe se tinha frio, se estava vestido de forma preparada para a chuva. Perguntaram-lhe com quem estava, e se eles tinham almoçado e estavam preparados para a chuva. Perguntaram-lhe quando voltava, se ía outra vez, o que fazia amanhã e se estava pronto para o amanhã, se mais, se menos do que tinha ontem estado pronto para hoje, e como estava a correr, hoje? Perguntaram-lhe se tinha apagado o esquentador, verificado se todas as torneiras estavam fechadas, tomado a vitamina e tirado tempo para reflectir acerca dos benefícios de cada um dos 26 componentes da mesma. Perguntaram-lhe qual o padrão da camisa, qual o tipo de tecido dos calções que envergava, qual a cor do céu quando para ele não se olha. Perguntaram-lhe o que andava a ler, os filmes que planeava visionar, quais as flores que cres

Hierarquia das Limpezas

Bem-haja, caro leitor. O cronista encontra-se neste momento em viagem na sua vigésima translação ao sol. Por isto confira-se-lhe alguma aptidão para a rebeldia, na história chocante que se segue. Estava o cronista sentado na aba de um sofá, e colocou os seus pés, ou os seus sapatos por interposto de seus pés numa cadeira. Aí, alguém apela a que retire seus pés da cadeira porque “eu sento-me aí.” É está a história. Como vê, o cronista quebrou o contrato social do sagrado código locais onde se pode pôr os pés . Por outro lado, não tendo faltado a nenhuma palestra do curso tira os pés daí antes que apanhes uma lamparina , administrados quase cirurgicamente por seus pais, cedeu ao pedido e retirou relutantemente os pés da cadeira. Relutantemente, por duas razões. A primeira das quais, é que “Relutantemente” parece uma palavra esperta no que concerne advérbios de modo, mas que o cronista aprendeu a jogar Football Manager . De seguida, porque lhe surgiu uma questão: quando é que os rabo

Sai um texto mal passado

Posso escrever sobre bolachas de manteiga numa lata azul-escura-brilhante, sobre um fio de ouro ensanguentado no chão do colégio, sobre um dealer chorão e aqueles 4 centímetros que cresci fora de tempo e quero descobrir onde.  Peçam-me para divagar em 5000 carateres sobre amigas de longa data ou sobre quando tranquei a turma na sala da catequese porque pensava que a hóstia era chocolate branco. Até me pinto para esgotar as palavras.  Mas nunca sobre sentimentos.  Não pensem que não tentei. Mas é que soa sempre a cru. Àqueles bifes em sangue por dentro ( ​sai um texto mal passado para a dois ), a forte e destemido, a corajoso, a um sentimento como ele se vê se fora, a uma mão que pega na pistola com firmeza mas por dentro treme mais do que as ilhas da Indonésia. As maravilhas do backstage das palavras são infinitas e esta é uma delas: ser fechado ao público e parecer aberto. (Ai, que escritor emocional. Ai, que poeta apaixonado, Vocês sabem lá, faz-vos gastar os lenços pel

História do Incompromissismo do Filipe (e do Chinês que lhe Roubou a Casa)

O Filipe é um tipo porreiro desde que em tipo se tornou. Filipe para os amigos, Filipe Rodriga para a Segurança Social, Rodriguinha para ninguém (mas fica a sugestão), o incompromissismo é uma das sua características que mais atormentam as cabecinhas questionadoras dos que o rodeiam. É que certo dia, como em inúmeros outros que poderiam aqui ser mencionados em vez deste, organizavam os companheiros do Filipe aquilo que se poderá apelidar de ajuntamento juvenil para bem do convívio e do consumo de cevada fermentada. Ora, criam estes moçoilos a típica conversa com dez intervenientes simultâneos numa daquelas aparelhetas na rede (leia-se, o Messenger) e questiona o anfitrião da peça sobre a disponibilidade dos restantes participantes. “'Tou lá batido”, “Podes contar comigo”, “Levo vinho, gajas e croissants ”, até que o Filipe cai na clássica de perfurar da cascata. É que é sempre a mesma treta, e a malta sabe, sim senhor, que se há traço característico que caracterize o Fi

A_rumar

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O ar circulava frio na rua, apesar de ser verão e haver sol. Tinha acabado de chegar e ainda estava com algum sono da viagem de comboio. Olhava agora em redor. Do outro lado da rua, na praça central, avistava um painel colorido com um letreiro a branco, mas estava demasiado longe para conseguir ler. Existe uma canção chamada Elogio da Pobreza , com uma letra fabulosa da multifacetada Regina Guimarães. Faz parte do álbum (muito) Animal do projeto musical Osso Vaidoso, uma colaboração da voz de Ana Deus com os bons sons de Alexandre Soares. Essa música ecoava de vez em quando na cabeça de Francis, particularmente em dias mais desgastantes, de grandes cargas (de água e não só), de chuvas dissolventes e pés nas poças, que tanto refletiam o seu desconforto. Dias de reflexão. Lembrava-se da primeira vez que a tinha ouvido. No seu primeiro ano de faculdade, tinha ganho esse CD animalesco ao participar num passatempo da revista  Mundo Universitário . O CD estava agora no sótão da cas