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A mostrar mensagens de fevereiro, 2018

Hoje, não te levantes

Das janelas – altas, quadradas e em sequência na parede à minha frente – só se vêem telhados e um pouco do céu azul, sem nuvens, só azul claro, clarinho.  A secretária, onde repousa o computador e portanto a folha digital onde escrevo, é uma espécie de ilha perdida, no meio de outras ilhas, que conserva, sabe-se lá há quantos anos, comunicados de imprensa, impressos de estudos publicados em revistas científicas, inúmeros livros nacionais e estrangeiros e uma planta, de espécie não identificada, que se ergue para cima e para os lados com as suas folhas tão verdes que, não existindo assim luz suficiente, muito menos natural, se estranha a vivacidade.  O espaço é grande, o barulho pouco, e o som das teclas reconforta-me num dia que já devia ter chegado ao fim, mas que continua dolorosamente vivo, à espera da ansiada morte, do risco de mais um número no calendário, só para aqui voltar outra vez amanhã.  Não foi um mau dia, registe-se. Foi, até, um dia entusiasmante, entre hist

Modernidade mais tardia que a minha virgindade

Que é? Não é vergonha nenhuma. É o que nunca ninguém disse, literalmente. Ninguém diz essa merda. Se não fosse realmente uma vergonha fazer-se-ia precisamente o oposto, e andaria toda a gente por aí a gabar-se da durabilidade da virgindade como se fosse alguma espécie de troféu, semelhante ao comprimento do pénis. 20 anos-luz em ambos, baby . É isto que fazemos. Agora e sempre, gabamo-nos das coisas. Simplesmente agora arranjámos novas plataformas para esse velho vício. E se não temos coisas grandes de que nos gabar, falamos sobre o tamanho das mãos num debate para dar certezas a toda a gente, ou então compramos coisas ainda maiores. No meu caso, isso é discutível, já que não tenho mesmo algo maior que comprar, e se tivesse nem o poderia fazer, uma vez que nunca encontrei a Galáxia Andrómeda disponível para comprar na Remax ou no OLX. Seria realmente a única coisa. Quando nos queremos gabar das posses, o usual a comprar é um smartphone com um ecrã cada vez maior, com o intuit

O regresso dos deploráveis

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Num misto de repulsa e curiosidade mórbida, assisti à cobertura mediática das manifestações fascistas que tiveram lugar no ano passado em Charlottesville, no estado norte-americano de Virginia. Não demorei muito a perceber que os factos ocorridos eram enquadrados pela esmagadora maioria dos repórteres (e também, naturalmente, pelos comentadores das redes sociais) segundo essa lógica que costuma “resolver” o problema da extrema-direita — a lógica do estranhamento . Isto é, dei-me conta de que os artigos de imprensa e alguma da indignação facebookiana construíam uma imagem quase exótica daquela gente branca, medíocre e zangada. Como se estivéssemos perante um grupo de extraterrestres que periodicamente se lembra de vir aterrar no nosso planeta para causar estragos. Como se, em última instância, todos eles não fossem outra coisa senão o próprio Mal personificado, algo tão radicalmente abjeto e contrário aos nossos valores que não merece sequer uma palavra para além do espanto, do insulto

À la carte de condução

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Ocasionalmente aparece em artigos culinários e reviews de restaurantes a apelativa ideia de que uma boa refeição é uma viagem pela gastronomia, pelos sabores, pelos sentidos... e como na maioria das viagens, existe um momento de pesquisa e de preparação prévia, e são feitas escolhas a gosto, desde o caminho mais cénico ao cálculo do trajeto mais rápido.  Esta viagem promete ser ligeiramente atribulada. Vai ser uma total misturada de termos culinários, noções de condução e, ainda, uma pitada de cinema, para no fundo apenas descrever acidentes de percurso. As analogias excessivas vão dar a volta ao estômago e fazer enjoar – mas o texto é breve. Apertem então o cinto de segurança.  Entradas 18 aniversários salteados e pastéis de idade tenra.  Os 16 anos são sweet e os 18 também têm as suas propriedades adoçantes, mesmo que possam conter vestígios de frutos menos saborosos. É a altura dos rótulos e dos vícios, mas também do entusiasmo e dos sonhos, dos bons disparates